Muitos jornais de norte a sul do país, sem falar dos internacionais, entre os dias 29 e 30 de dezembro de 2010 e muitas informações enviadas de forma eletrônica, nesse início de ano novo, trazem a notícia de que o conhecido sociólogo e teólogo belga François Houtart (85 anos) teria molestado sexualmente um menino de oito anos. Não dizem em que ano isso aconteceu e nem dão informações claras sobre o fato. Apenas precisam que o menino é filho de uma prima de Houtart e que foi a irmã do mesmo que teria denunciado o fato visto que o nome de Houtart tinha sido indicado para Nobel da paz.
Não quero discutir a pedofilia e nem os diferentes crimes sexuais. Mas, chamou-me a atenção de que muitos conhecidos e amigos de Houtart no Brasil afirmaram-se estarrecidos diante dessa revelação e até Folha de São Paulo (30/12/2010) afirma que o padre teólogo da libertação teria até sido expulso da organização belga que ele mesmo ajudou a fundar, o CETRI - Centro Tricontinental.
Não tomo a defesa do caro Professor François Houtart, aliás, homem douto, cujas posições em favor da dignidade de diferentes grupos e países conheço bem. Mas espanta-me o nosso muitas vezes hipócrita estarrecimento e o nosso desconhecimento em relação á condição humana especialmente quando se trata de algum religioso ou de pessoa de destaque internacional.
Lembro-me que alguns anos atrás quando o rabino Henri Sobel, sob efeito de medicação, roubou gravatas num aeroporto norte-americano, a imprensa e muitas pessoas o crucificaram como se aquele ato, aquele ato impensado, desatinado, inesperado e, sem dúvida condenável, pudesse julgar toda a sua história. Diante do roubo parecia que a história de luta daquele homem pela dignidade de muitos, sobretudo nos tempos da ditadura militar brasileira, desaparecia. Estamos sempre prontos a crucificar qualquer deslize na história daqueles que erigimos como "perfeitos", aqueles que decretamos que não podem errar, aqueles que imaginamos estarem acima do comum dos viventes. E, talvez por isso mesmo queiramos premiá-los com o Nobel de tantas coisas e condená-los quando descobrimos algo que manche a imagem perfeita que nós mesmos construímos.
Pois é, nos humanos viventes, escorregamos, caímos, empurramos, somos empurrados. Nós humanos viventes somos tentados a possuir o bem alheio, a desejar corpos e até corpos infantis. E, algumas vezes somos dominados por nossa fraqueza e cedemos à vontade imediata de nossos corpos. No fundo não somos puros e nem perfeitos. Somos todos não apenas falíveis, mas sim pecadores de fato. Somos todos capazes de tirar a vida ou diminuir vidas de alguma maneira. Basta perder por um instante o equilíbrio do passo.... Basta sair um pouco da sobriedade habitual... Basta não conseguir controlar os harmônios... Basta que a raiva seja maior do que a que podemos suportar... Basta que a sedução do desejo me inebrie... Em um instante tudo se transforma!
Pois é, atire a primeira pedra quem nunca tiver pecado...
Mas somos também capazes de erguer os caídos nas estradas da vida, de pensar alternativas viáveis para o mundo dos empobrecidos, de pensar em Fóruns Sociais internacionais para buscar saídas para uma vida melhor para todos... Somos essa mistura de grandeza e miséria!
Não faço a apologia de nossos limites e nem estou desculpando as nossas muitas falhas e pecados uns contra os outros. Apenas faço uma alerta para nós mesmos contra a hipocrisia que pode tomar conta de nós como se fôssemos livres de pecado. Talvez estejamos livres desse pecado preciso de meu irmão ou daquele outro de minha irmã. Mas do meu, deste eu não estou livre. Meu pecado confessado ou inconfessado, descoberto ou ainda oculto continua em mim. E ao tentar esquecê-lo ou escondê-lo posso correr o risco de não ver mais "a trave em meu olho, mas apenas a palha no olho alheio".
Nossa hipocrisia chega a um ponto que diante de um escorrego maior ou menor reduzirmos a vida de alguém com 85 anos de idade que prestou incontáveis serviços à humanidade e talvez já tenha sofrido o suficiente pelo pecado que ele mesmo já admitiu. Então, o que queremos mais?
Embora estarrecida com nossa hipocrisia e ignorância, capaz de atirar pedras e de não viver o perdão e a misericórdia, sobretudo com àqueles que testemunharam por sua vida que, apesar dos escorregos, foram capazes de "muito amor", guardo a esperança de nossa conversão.
2 de Janeiro de 2011.
Ivone Gebara - Escritora, filósofa e teóloga
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