Talvez nunca a esquerda tenha sido tão esquerda e a direita tão direita na América Latina como agora. E a mídia hegemônica permanece do lado em que sempre esteve
Enganaram-se os profetas do fim da dicotomia esquerda-direita com a queda do Muro de Berlim. Na Europa e EUA, afundados pela crise econômica que poderia significar a derrocada final do neoliberalismo, países antes considerados de primeiro mundo fazem a clara opção pelo capital, financiando os bancos e investidores enquanto arrocham salários, cortam benefícios e elegem os estrangeiros como o inimigo da economia.
As consequências têm sido manifestações como na França, na Espanha e na Inglaterra, ou mesmo nações à beira do caos como a Grécia. A bola da vez é a Irlanda, mas Portugal também está na alça de mira do "socorro" do FMI. O receituário é bem conhecido por aqui: redução do investimento público, aumento da idade para aposentadoria, diminuição no número de funcionários públicos, enfraquecimento do poder do Estado... As alternativas mais à esquerda (como maior distribuição de renda, fortalecimento do mercado interno e controle de capitais) estão fora de discussão.
Enquanto isso, na América Latina há um certo refluxo da onda "esquerdista" que levou ao poder presidentes como Lula, Evo Morales e Hugo Chávez. Depois da fraude eleitoral no México, o governo ilegítimo de Felipe Calderón, do partido de direita Ação Nacional (PAN), aprofundou a política de integração econômica com os Estados Unidos levando à maior recessão da história do país (diminuição do PIB em 6,7% em 2009). Com isso, a empresa capitalista por excelência, o comércio de drogas ilícitas, passou a movimentar estimados 45% da renda bruta anual do México. No modelo de "guerra contra as drogas" implementado com apoio dos EUA que investiram na iniciativa US$ 1,8 bilhão desde 2008, perto de 30 mil pessoas perderam suas vidas nos últimos quatro anos, sendo que 12 prefeitos foram assassinados somente em 2010. Com as leis trabalhistas "flexibilizadas" desde os anos 1990, os trabalhadores tem que escolher entre salários de fome com jornadas medievais ou tentar a sorte com os "coyotes" para viver como ilegais do outro lado da fronteira. Por outro lado, Carlos Slim, o homem mais rico do mundo segundo a Forbes, que comprou do governo a Telmex em 1990 e controla Embratel e Claro no Brasil, acaba de fazer uma oferta para ter 100% da Net. O objetivo é unir aqui e no México TV e banda larga à telefonia fixa e celular.
Em Honduras, a simples proposta de um plebiscito para reformar a constituição que, segundo alguns, poderia aproximar o país do "Socialismo do Século XXI" de Chávez, levou ao golpe que teve forte participação dos empresários locais da comunicação (uma das primeiras providências foi derrubar o sinal de veículos "não-alinhados") e apoio velado dos EUA para derrubar o presidente eleito Manuel Zelaya. Outra questão de fundo foi a adesão do país à esquerdista Aliança Bolivariana para as Américas - Alba, que se contrapõe à Aliança Latino-Americana de Livre Comércio (Alca), impulsionada pelo governo estadunidense. Nos 17 meses desde o golpe, Honduras segue numa permanente crise econômica, sanitária (a dengue está totalmente fora de controle) e humanitária. A imprensa golpista tenta esconder, mas são milhares os torturados, pelo menos 140 estudantes, professores e líderes sociais e políticos foram assassinados e há centenas de exilados. Entre os jornalistas que se opõem ao governo, dez já foram mortos desde julho de 2009. E agora o WikiLeaks tem revelado o quanto os embaixadores estadunidenses no país se preocupavam com a aproximação entre Zelaya e Chávez e o quanto isso poderia afetar os "interesses americanos"...
Na Colômbia também não há nada de novo. O recém-eleito presidente Juan Manuel Santos (num pleito com mais de 56% de abstenção no segundo turno e inúmeras denúncias de fraudes), é ex-ministro da Defesa de Álvaro Uribe e membro da família proprietária do principal jornal do país (o El Tiempo), da mais importante revista semanal de política e variedades (La Semana), de uma rede de rádios, um canal de TV com previsões meteorológicas e em breve um novo canal de TV aberta de abrangência nacional. A aliança com os EUA, que estão implantando novas bases militares no país apesar da inconstitucionalidade proferida pela Suprema Corte local, segue firme no Plan Colombia, de enfrentamento exclusivamente militar do narcotráfico e das guerrilhas. Já o partido de esquerda Polo Democrático Alternativo (PDA) denunciou no início de novembro que ao menos 50 políticos esquerdistas, sindicalistas, dirigentes sociais, camponeses, indígenas e defensores dos direitos humanos foram mortos apenas nos primeiros 90 dias de governo Santos. A denúncia foi feita numa conferência no Equador e, claro, não ilustrou as páginas de La Semana.
Já no Chile, a coalizão de esquerda Concertación perdeu em janeiro a presidência que ocupava desde o fim da ditadura Pinochet há 20 anos. Vários fatos concorreram para a volta da direita ao poder com a eleição do mega-empresário Sebastien Piñera. Para começar, o conservadorismo estava reunido em torno de Piñera, enquanto os progressistas se dividiram entre o representante oficial da Concertación, o ex-presidente de pouco destaque Eduardo Frei, Jorge Arrate, que foi ministro de Frei, e Enríquez-Ominami, que também era da coalizão até 2009. Além disso, assim como no Brasil não houve crescimento econômico no Chile em 2009, devido ao agravamento da crise nos EUA e Europa, levando a uma queda na popularidade da ex-presidente socialista Michelle Bachelet. Também ajuda bastante o fato de Piñera, irmão de um ex-ministro do trabalho do ditador Augusto Pinochet, ser o dono de um dos principais canais de TV do país, a Chilevisión. Não é a toa que ele ficou tão à vontade em frente às câmaras durante todo o resgate dos 33 mineiros soterrados por meses devido à falta de segurança geral nas centenas de minas de cobre chilenas.
Nos países que têm mantido a opção pela esquerda nas urnas, as tentativas de golpes e desestabilização pela direita e pela mídia hegemônica continuam. Depois do golpe civil-militar-midiático de menos de 48 horas em 2002 na Venezuela, tão bem representado no documentário "A revolução não será televisionada", dos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O'Briain, ocorreram outras situações graves no continente. Na Bolívia em 2006, o envio do embaixador estadunidense Philip Goldberg, que já havia trabalhado "coincidentemente" na Bósnia durante a guerra civil que desmembrou a antiga Iugoslávia e depois no Kosovo no período em que a província se separou da Sérvia, seria um forte indicativo da estratégia encampada pelos meios de comunicação do país andino de separação das províncias da chamada Meia Lua, as mais ricas da nação. A ideia, que contava com programas eleitorais de TV produzidos nos EUA e pesquisas fajutas, pretendia primeiro tentar revogar nas urnas a constituição bolivariana de Evo Morales em seu início de governo. Se não desse certo, era sempre possível tentar impulsionar uma guerra civil para pedir a intervenção de tropas de paz da ONU como aconteceu no Haiti.
Em setembro desse ano, foi a vez de Rafael Correa, presidente duas vezes eleito no Equador e responsável por uma estabilidade política rara no país, enfrentar nas ruas policiais e militares amotinados. Ele chegou a ser atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo e rasgar a camisa para mostrar o peito nu numa janela desafiando os revoltosos a matá-lo. Correa ficou retido por um tempo num quartel cercado e teve de ser resgatado por militares fieis ao governo constitucional de Quito. Como se apurou depois, boa parte dos militares e policiais que aderiram ao movimento golpista teriam sido enganados por uma campanha de desinformação empreendida por meios de comunicação da direita equatoriana, os quais mentiram sistematicamente sobre pequenas mudanças nos soldos dos membros dos serviços de segurança pública. "O que aconteceu não é por alguns dólares. É uma clara tentativa de conspiração, coordenada com o fechamento do aeroporto, com a tomada das antenas, com a interrupção da TV Equador", afirmou o presidente na sacada do palácio presidencial logo após sua libertação.
Na Argentina, segue o enfrentamento diário entre as elites capitaneadas pelo Grupo Clarín, que reúne jornais como o Clarín e o La Nación, a Rádio Miter, o Canal 13 de Buenos Aires, as TVs a cabo Multicanal e Cablevisión, portal e provedor de internet e outros meios de comunicação, e a presidente Cristina Kirchner, que promulgou a polêmica Ley de Medios. Apesar de ainda restarem alguns recursos nos tribunais argentinos, a lei proposta há um ano entrou em vigor no último mês de setembro e, entre outras coisas, estabelece que uma mesma empresa não pode possuir canais de TV aberta e a cabo, além de reduzir de 24 para dez o limite das concessões de rádio e TV em mãos de um mesmo proprietário. Pela nova legislação, o espectro comunicacional deve ser dividido em três partes iguais para atender o governo, o setor privado comercial e a sociedade civil organizada. Também foi barrada a entrada indiscriminada das companhias telefônicas no mercado de TV. Aos oligopólios midiáticos, restam menos de dez meses agora para vender algumas de suas empresas e se adequar às novas regras. Ou então para derrubar o governo de Cristina e impor de volta as "leis do livre mercado".
Não há dúvidas de que as eleições presidenciais no Brasil também se desenrolaram fortemente impactadas por esse cenário continental. Mais do que PSDB, DEM e PPS, foi Globo, Folha e Veja que coordenaram a campanha de extrema direita de José Serra. Basta ver a enxurrada de denúncias vazias nos jornais, o desespero das capas de revistas e a ridícula montagem do episódio da "bolinha de papel" em incríveis sete minutos do Jornal Nacional! Mas assim como na Venezuela, Bolívia e Equador, a disputa não se encerrou nas urnas. A Folha de S.Paulo e o Globo já conseguiram acesso ao processo da ditadura militar contra a agora presidente eleita Dilma Rousseff. Certamente esperavam que os torturadores tivessem conseguido no início dos anos 1970 "informações" para usarem contra ela que seus batalhões de "repórteres investigativos" não conseguiram nos últimos três anos.
Ao mesmo tempo, a Velha Mídia aponta suas baterias contra o seminário internacional para discussão da regulação da mídia convocado pelo ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social, contra o Plano Nacional de Banda Larga, que vem sendo gestado há meses, e contra as propostas da Conferência Nacional de Comunicação, que contou em 2009 com a participação ativa de mais de 30 mil cidadãos. Sem deixar de acusar todo tempo, claro, o presidente Lula e a presidente eleita Dilma de avessos à liberdade de expressão, quase que com os mesmos termos que usam contra Hugo Chávez de forma ininterrupta há quase dez anos. Parece que 2011 não vai ser um ano muito calmo por aqui...
Vinicius Souza - Maria Eugênia Sá - Jornalistas e fotógrafos
Fotógrafos, jornalistas e documentaristas independentes. Vejam outros trabalhos em http://mediaquatro.sites.uol.com.br
Publicado originariamente na Ideias em Revista, Dezembro2010/janeiro2011, do SISEJUFE-RJ].
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