quarta-feira, 11 de novembro de 2009

CONJUNTURA DA SEMANA ESPECIAL. A REORGANIZAÇÃO DO CAPITALISMO BRASILEIRO

A análise da conjuntura da semana dedica-se ao exame da reestruturação do capitalismo brasileiro tomando como referência as ‘Notícias do Dia’ publicadas no sítio do IHU e a revista IHU On-Line publicada semanalmente. A análise é elaborada, em fina sintonia com o IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT – com sede em Curitiba, PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis a análise.

A reorganização do capitalismo brasileiro
O governo Lula e a segunda revolução silenciosa

A primeira década do século XXI no Brasil será, provavelmente, identificada daqui a alguns anos como o período em que se processou a segunda revolução silenciosa no país. A primeira, deu-se na Era FHC e significou o desmonte da Era Vargas – a brutal transferência de ativos do Estado para o mercado. Essa segunda revolução silenciosa – em curso no governo Lula – coloca em marcha a formação de uma nova maioria econômica e política.

A consolidação desse processo liderado por Lula, a maior liderança política do país pós-Vargas, definirá o Brasil das próximas décadas, e tudo indica que as eleições de 2010, independente de quem seja o vitorioso, darão continuidade às bases lançadas pelo governo Lula, tanto no modus operandi da política, como nas bases da economia.

No bojo da revolução silenciosa do governo Lula assiste-se a uma reconfiguração do capitalismo brasileiro. Ao projeto econômico de corte neoliberal do governo anterior intitulado de ‘inserção subordinada à economia internacional’, o governo Lula respondeu com a retomada do modelo econômico ‘nacional-desenvolvimentista’, com significações semelhantes e distintas daquele adotado a partir dos anos 30, como veremos.

O modelo neo-desenvolvimentista de Lula caracteriza-se por duas vertentes. Por um lado, tem-se o Estado Financiador que, utilizando o seu banco estatal, o BNDES, exerce o papel de indutor do crescimento econômico fortalecendo grupos privados em setores estratégicos. Por outro, tem-se o Estado investidor responsável pelo investimento em mega-obras de infra-estrutura que se manifesta no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Porém, diferentemente do nacional-desevolvimentismo da Era Vargas, o Estado não é o proprietário de empresas, mas se torna a principal alavanca para criar gigantes privados que tenham capacidade de disputa no mercado interno e internacional.

O nacional-desenvolvimentismo de Lula assemelha-se mais ao período JK – referência a Juscelino Kubitschek, presidente do Brasil entre 1956 e 1961 – do que à Era Vargas, ou seja, o Estado presta-se antes de tudo ao fortalecimento do capital privado. Com o governo JK se deu a formação do tripé Estado, empresas estrangeiras e empresas nacionais. O papel do Estado é o de responder às demandas de infraestrutura, de energia e logística para atender aos interesses do capital privado nacional e transnacional. Foi o que procurou realizar JK e é o que faz Lula tendo no Programa de Aceleração da Economia (PAC) a sua síntese.

Destaque-se ainda que ao lado do ‘Estado financiador’ e do ‘Estado investidor’, tem-se o ‘Estado Social’. Assiste-se à retomada do papel do Estado como provedor de políticas sociais, sobretudo de mitigação da pobreza, dentre as quais o Bolsa Família é a mais emblemática.

No campo da política, por sua vez, contrapondo-se à hegemonia da aliança tucano-pefelista secundada pelo adesismo peemedebista que caracterizou o governo FHC, com forte oposição do PT, da CUT e do movimento social, Lula transformou-se no tertius da luta de classes e como tal assumiu o papel de conciliador de classes, ou seja, um governo que absorve as representações corporativas de trabalhadores e empresários, media interesses conflitantes, administra-os e formula políticas para a sociedade.

A segunda revolução silenciosa que se processa no governo Lula caracteriza-se ainda pelo reposicionamento do Brasil na geopolítica mundial. Se no governo anterior a presença do Brasil no exterior era raquítica, assiste-se agora a elevação do Brasil à condição de potência e sua transformação num global player. O país assumiu definitivamente o papel de nação estratégica – política e econômica – no continente latino-americano e faz-se ouvir nos grandes fóruns internacionais. De mero coadjuvante passou a importante protagonista nos debates de fundo da sociedade mundial.

Analisar as características em curso da segunda revolução silenciosa responsável pela reorganização do capitalismo brasileiro é o que se propõe essa análise de conjuntura. Para uma melhor compreensão do caráter e significado dessa segunda revolução silenciosa faz-se necessário um breve recuo histórico.

Governo FHC. A integração passiva
O governo Fernando Henrique Cardoso passará para a história brasileira como o governo que imprimiu ao país o modelo econômico caracterizado pelo trinômio liberalização, privatização e desregulação. A Era FHC assumiu características de uma verdadeira revolução silenciosa. Os anos em que FHC governou foram os anos dourados do neoliberalismo, nos quais o capitalismo brasileiro passou por uma profunda reviravolta caracterizada pela brutal transferência de ativos do Estado para o mercado. Compreender esse período é importante para entender o caráter da nova revolução silenciosa em curso nessa década, agora sob a hegemonia de outro governo.

A essência dos acontecimentos dos anos 90 exige o recuo para a década de 80. Os anos 80 foram considerados a década perdida na economia mundial. No Brasil a economia ficou estagnada, aumentou a recessão e o desemprego. Uma das propostas para se combater a crise econômica e retomar o crescimento foi apresentada num paper redigido por John Williamson (n.1) em 1989.

Neste documento, o economista listava algumas recomendações dirigidas aos países dispostos a reformar suas economias para voltarem a crescer. Entre os principais pontos recomendados destaca-se a adoção de uma rigorosa disciplina fiscal, a abertura comercial, a busca por investimentos estrangeiros e as privatizações. O conjunto dessas políticas conhecidas como o Consenso de Washington defendia na essência a retirada do Estado das atividades produtivas e a total liberdade ao mercado.

Cinco anos depois do lançamento do Consenso de Washington, em 1994, Fernando Henrique Cardoso assume a presidência do Brasil e adota com vigor a agenda do ‘Consenso’ e inicia uma ‘revolução silenciosa’ no capitalismo brasileiro. ‘Revolução’ essa assumida em uma entrevista concedida à revista Lua Nova em 1997 pelo próprio FHC – reproduzida em artigo de Inácio Neutzling.

No mesmo ano [1997], o economista José Luiz Fiori comenta em artigo: "O que se está vendo é uma imensa recomposição patrimonial da riqueza brasileira, basicamente movida por uma transferência gigantesca de riqueza ou privatização de riqueza”. A revolução silenciosa implementada por FHC implica em que, segundo Fiori, "o Estado deixa de ser locomotiva do crescimento, mas segue cumprindo o papel decisivo de vitalizador de um empresariado que não si muove”.

O sociólogo Francisco de Oliveira foi outro que chamou a atenção (n.2) para a natureza da mudança em curso: “Capitais estrangeiros, privatizações e fusões criaram uma nova burguesia no país. E desestabilizaram as forças políticas”. Afirma o sociólogo: “Nesses seis anos sob FHC, houve uma transferência do patrimônio e da propriedade no Brasil para a qual o regime político não tem resistência. Cerca de 30% do PIB brasileiro mudou de mãos. É um terremoto. Com as privatizações, o governo perdeu boa parte da capacidade que tinha de distribuir favores no Estado entre seus aliados. Ao mesmo tempo, as agências reguladoras são pouco mais que um simulacro. Elas têm muito pouca capacidade para impor critérios e regras públicas a um sistema de competição pesado que se dá agora em escala internacional”.

A reorganização do capitalismo brasileiro realizada no governo FHC significou uma ruptura com o modelo de desenvolvimento que se desenhou no país a partir dos anos 30 – a Era Vargas – no qual o Estado jogou um papel decisivo. A agenda fundada no período FHC se orienta pelo trinômio: abertura econômica, privatização e desregulamentação do Estado.

O PSDB impulsionou a metamorfose de um Estado empresário para um Estado regulador – na visão dos tucanos condição necessária para o retorno do crescimento econômico e para que o país pudesse se inserir de forma competitiva no mercado internacional. Em poucos anos promoveram-se alterações constitucionais significativas, a mais importante foi a reformulação do capítulo constitucional sobre a economia. O Estado deixou de ser o principal indutor da economia e delegou esse papel para o mercado.

Os anos 90 ficaram conhecidos como a década neoliberal e significaram a capitulação e a rendição ao receituário neoliberal, ou ainda, a vitória do mercado e do pensamento único. Os dois mandatos de FHC (1992-2002) aprofundaram as orientações do Consenso de Washington: desregulação do Estado, quebra de monopólios, venda de empresas estatais, tentativas reiteradas de desmonte da CLT. O país tornou-se o paraíso para investimentos internacionais que assumiram o filé mignon de setores estratégicos (finanças, telefonia, mineração, energia). Paralelo a esse processo de desfibração do Estado, os movimentos sociais passaram a ser criminalizados e desqualificados como forças reacionárias contrárias à modernização do país.

Os anos FHC redundaram em mais uma década perdida sob a perspectiva do crescimento econômico. O modelo econômico da inserção competitiva na economia internacional fracassou, revelou-se como integração passiva e foi derrotado nas eleições de 27 de outubro de 2002.

Lula e o Pós-Consenso de Washington
A vitória de Lula foi saudada como a possibilidade de uma “refundação do Brasil”, o início de uma ‘Nova Era’ (n. 3) e uma reação ao Consenso de Washington. A chegada de Lula ao poder foi vista mundo afora, particularmente na América Latina, com enorme expectativa em função do que sempre representou o PT no cenário político latino-americano – a representação da longa caminhada feita pelos movimentos sociais (sindical, popular, pastoral) – e, principalmente, em função da possibilidade de se trilhar outros caminhos à ortodoxia neoliberal. Aguardava-se a possibilidade de retomada de um projeto de nação de caráter nacional popular.

Em seu pronunciamento mais importante após a eleição, intitulado ‘Compromisso com a Mudança’, Lula sintetizou essa enorme expectativa: “o Brasil votou para mudar”, sintonizando-se com a fantástica energia política liberada com sua eleição (n. 4). Lula, porém, passa a sofrer enorme pressão exercida, sobretudo, pelo mercado financeiro. Logo após a sua eleição, o mercado financeiro rapidamente estabelece a sua pauta: 1- no orçamento de 2003, o superávit primário (despesas menos receitas), deveria ser no mínimo de 4% a 5% do Produto Interno Bruto (PIB); 2 - as reformas da Previdência e tributária são essenciais para equilibrar as contas públicas; 3 - o novo governo não deve ceder às pressões de estados e municípios para renegociar o pagamento da dívida com a União; 4 - os nomes que comporão a equipe econômica precisam inspirar credibilidade. Por detrás dessas exigências estava o medo de que o país rompesse com os credores.

Lula assume e dá um “cavalo-de-pau na economia” (n.5). Por ‘cavalo-de-pau’, entenda-se o aumento da taxa de juros de 25% para 25,5% e depois 26,5%. O aumento do superávit primário de 3,5% para 3,75% e posteriormente para 4,25%, e cortes no orçamento no montante de R$ 14 bilhões que chegaram a atingir a área social. O ‘cavalo-de-pau’ foi dado com receio de que a crise econômica se agravasse com a inflação recrudescendo, o dólar a US$ 4,00 e o risco Brasil aumentando. Porém, ainda antes, o PT tratou logo de acalmar o mercado financeiro nomeando para a presidência do Banco Central, o banqueiro Henrique Meirelles (ex-presidente internacional do Banco de Boston) (n.6). A indicação de Meirelles foi sinalizada em Washington (EUA) na primeira viagem de Lula aos EUA.

O PT, para justificar a guinada na política econômica, invocou a ‘Carta ao Povo Brasileiro’(n.7). O documento escrito às pressas, mas calculadamente nas eleições de 2002, reafirma o compromisso do governo Lula em honrar os pagamentos com os credores. Ficou evidente que a orientação político-econômica do governo Lula imprimida em seu governo foi a manutenção da macroeconomia do governo anterior, tendo como pilares a disciplina fiscal e monetária. Os sinais foram abundantes: aumento na taxa de juros, aumento do superávit primário, cortes no orçamento que atingiram a área social, renovação do acordo com o FMI, entre outros.

Essa guinada do PT na política econômica surpreendeu a muitos, inclusive instituições internacionais. Vinod Thomas, diretor do Banco Mundial para o Brasil na época, não escondeu sua admiração pelo novo governo: “nos primeiros meses, Lula mostrou, até mais que a ênfase no social, a responsabilidade macroeconômica” (n.8).

A possibilidade de se juntar o social com a ortodoxia econômica passou a ser denominada de pós-Consenso de Washington. Nas palavras de Vinod Thomas, a definição: “Acho que já existe uma nova direção que considera os pontos do Consenso de Washington (ajuste fiscal, privatização, desregulamentação) como um componente específico dentro de algo mais amplo. A crítica que se faz é a de que o Consenso de Washington sozinho não é apenas insuficiente, mas contraproducente. Porque, se a parte social não muda, não se consegue nem as melhorias econômicas pretendidas pelo Consenso de Washington. Então o pós-Consenso de Washington, ou, para alguns, o novo Consenso de Washington, seria o social junto com a economia e a política, e não depois”, disse o diretor do Banco Mundial.

É o que Lula fez. Juntou o social com a ortodoxia econômica. Todo o primeiro mandato de Lula foi isso. Por um lado, a aplicação dos fundamentos da disciplina fiscal e monetária e, por outro, políticas sociais de caráter, sobretudo, compensatórias. Lula passou a ser citado como exemplo pelo FMI e pelo Banco Mundial e circulou com desenvoltura pelo Fórum Social Mundial e pelo Fórum Econômico Mundial (Davos).

O neo-desenvolvimentismo de Lula
O Estado financiador. As grandes transnacionais brasileiras

O segundo mandato, porém, sob a perspectiva econômica sinalizou para uma mudança de rota e mais do que isso deu início à segunda revolução silenciosa que está reorganizando o capitalismo brasileiro. Esse fenômeno caracteriza-se, por um lado, pelo Estado financiador que impulsiona a constituição de fortes grupos econômicos, ou ainda, a formação de grandes multinacionais brasileiras com capacidade competitiva no mercado internacional e, por outro, pelo papel do Estado investidor que coloca em marcha a construção de mega-obras, destinadas sobretudo a atender as demandas exigidas pelo grande capital.

Comecemos com a constituição das grandes corporações de capital privado nacional. A formação desses grupos tem no Estado, através do BNDES, a principal alavanca. O BNDES – hoje, o maior banco de fomento do mundo – transformou-se na mais poderosa ferramenta de reestruturação do capitalismo brasileiro. Nas palavras de Luciano Coutinho, presidente do BNDES, a síntese do novo papel do Estado-financiador: “Empresas brasileiras competentes e competitivas devem merecer o apoio do BNDES para se afirmarem internacionalmente”.

Criado na década de 50 pelo então presidente Getúlio Vargas, o BNDES surgiu para dar apoio à industrialização e planejar o desenvolvimento de longo prazo. Na década de 70, com os militares, o banco orientava-se pela regra da "substituição de importações". Isso significava apoiar setores da economia em que o Brasil ainda era importador, como, por exemplo, a petroquímica. Havia uma política tripartite, em que companhias multinacionais, agentes do setor privado e empresas estatais se uniam para construir um novo setor da economia.

Nos anos 80, o banco se transformou num autêntico hospital, que socorria qualquer empresa em dificuldades. Na década seguinte, a dos anos 90, na Era FHC, o banco se tornou o grande articulador das privatizações, não apenas desenhando o modelo de venda das estatais, como também participando dos consórcios compradores. Na Era Lula, o BNDES orienta-se pelo conceito de "desenvolvimentismo". E tem sido o principal agente de grandes fusões sempre com o objetivo de fortalecer o capital nacional privado em condições de competir com o capital transnacional.

No jargão econômico, o BNDES elege os seus "campeões nacionais" e joga pesado para torná-los competitivos. Nas palavras de Vinicius Torres Freire, “a consolidação de oligopólios privados sob patronato estatal é um dos aspectos mais relevantes do período luliano". Luciano Coutinho, presidente do BNDES, para justificar a ação do Estado afirma que “todas as economias desenvolvidas têm empresas transnacionais".

A principal característica do capitalismo brasileiro hoje é a ativa participação do Estado na constituição de novos ‘global players’ em diferentes ramos da atividade econômica. Com o governo Lula, particularmente em seu segundo mandato, o BNDES vem sendo decisivo para a conformação de alguns grupos econômicos que em comum, na maioria dos casos, têm o Estado como o indutor do negócio, seja através de empréstimos ou compra de ações. Em outros, o Estado é o facilitador ou ainda assume o papel de sócio. Em todos eles, a ação privilegia o fortalecimento do capital nacional frente ao capital transnacional.

Vejamos alguns casos:
- Telefonia: O BNDES e os fundos de pensão foram decisivos para a criação da supertele nacional – fusão da Oi com a Brasil Telecom – que ficou nas mãos dos empresários Sérgio Andrade (grupo Andrade Gutierrez) e Carlos Jereissati (grupo La Fonte). Apesar de manter o setor nas mãos da iniciativa privada, o governo passou a ter poder de veto em decisões estratégicas, entre as quais a venda a grupos estrangeiros. Registre-se que no caso da conformação da megaoperadora, o capital privado foi subsidiado duas vezes pelo Estado. A primeira, na forma de financiamento – via BNDES – para as privatizações ainda na época de Fernando Henrique Cardoso, e a segunda, por ocasião do financiamento da reestruturação societária da Oi para permitir que a mesma incorporasse a Brasil Telecom.

- Petroquímica: Através de forte movimentação do Estado, a Petrobras permitiu que a Braskem, do Grupo Odebrecht, crescesse rapidamente. Ela é a maior do Brasil e está entre as dez maiores do mundo. Um acordo com a Petrobras em 2007 permitiu a incorporação dos ativos da Copesul, Ipiranga, Petroquímica Paulina e Petroquímica Triunfo. Em troca, a Petrobras passou a deter 30% do capital votante e 25% do capital total da empresa. A última movimentação em curso que concentrará ainda mais o setor é a possível incorporação da Quattor (controlada pela Petrobras e Unipar) pela Braskem. De novo a Petrobras será importante para se fechar o negócio e tudo indica que dentro da política de fortalecimento de empresas competitivas no mercado externo, o governo dará aval para que a incorporação avance. Desse modo, a Braskem, grupo de capital privado, contaria com um forte sócio, o Estado brasileiro.

- Alimentação Formação da Brasil Foods. A Sadia apostou no mercado de derivativos e com a crise mundial literalmente quebrou. Com a empresa comprometida restava apenas a sua venda e, antes que caísse em mãos de um grupo estrangeiro, o governo articulou a entrada do BNDES e dos Fundos de Pensão no processo e alavancou a sua fusão com a até então arqui-rival Perdigão. A Brasil Foods nasceu gigante. É de longe a maior empresa de alimentos industrializados do Brasil e a maior exportadora de produtos de carne processada do mundo. Tornou-se a terceira maior exportadora brasileira, atrás apenas da Petrobras e da Vale do Rio Doce. Por isso, e para acentuar sua agressividade internacional, tem nome inglês, porém, o Brasil continua grafado com “s”, como na língua portuguesa e não com o “z” do inglês, exigência do governo.

Também na área da alimentação, o Estado através do seu braço financiador, o BNDES vem fortalecendo dois gigantes, o grupo Marfrig e o grupo Bertin. Ambos atuam na área de carnes e é bastante provável que em breve os dois grupos acabem se unindo formando uma grande potência que viria a ultrapassar a Brasil Foods. O BNDES fortaleceu recentemente o grupo Marfrig ao subsidiar a aquisição da Seara e ajudou na fusão dos grupos Bertin e JBS-Friboi.

- Papel e celulose: Outra área em que o governo vem estimulado a formação de fortes grupos privados. Com recursos públicos do BNDES o governo apoiou a fusão entre a Votorantim Celulose e Papel (VCP) – controlada por Ermírio de Moraes – e a Aracruz. Ambas, a Votorantim Celulose e a Aracruz tiveram perdas enormes com derivativos cambiais e com a crise financeira pediram socorro ao governo. Com a fusão criou-se a maior empresa mundial de celulose de fibra curta e a quarta em celulose total.

Sucroalcooleiro – O Etanol é visto, particularmente pelo governo Lula, como uma possibilidade ímpar de crescimento econômico no mercado internacional. O próprio presidente Lula transformou-se numa espécie de caixeiro-viajante do etanol brasileiro e chegou a chamar os usineiros de heróis e personalidades internacionais. O agronegócio é um dos filões de maior apoio do BNDES. Particularmente no financiamento de usinas para a produção do etanol, o banco vem investindo pesadamente. Apenas em 2005 e 2006, o Banco desembolsou R$ 3,3 bilhões para financiar a construção de usinas, plantio de cana e projetos de co-geração de energia elétrica. Na ocasião, dados revelavam que estavam em construção no Brasil 100 novas usinas de álcool, com investimentos de R$ 10 bilhões, muitas delas interrompidas com a crise econômica. Para 2010, o BNDES identificou 89 projetos de novas unidades, das quais 51 já estão em andamento.

Destaque-se o surgimento de um processo inteiramente novo na área sucroalcooleira – na contramão do que gostaria o governo – que aponta para uma nova dinâmica do capital no campo. Famílias tradicionais, cujo sobrenome virou sinônimo da indústria sucroalcooleira, começam a se tornar meros coadjuvantes de uma história que volta a ser reescrita e tem como mote a concentração e os ganhos de escala. Nesse processo, famílias como Junqueira Franco, Biagi, Vieira, Tavares de Melo e Resende Barbosa, cedem seus lugares a novos personagens. Entre eles, Dreyfus, Tereos, ETH (da Odebrecht), Bunge, Cargill e Adecoagro (do megainvestidor George Soros), além da gigante Cosan.

Finanças: Outra área em que o país assiste a uma crescente concentração é o sistema financeiro. Esse processo começou no governo FHC e continuou no governo Lula. Dentre as maiores fusões recentes destacam-se a fusão do Itaú com o Unibanco e compra da Nossa Caixa pelo Banco do Brasil. Se considerados os cinco maiores banco do País (Itaú-Unibanco, BB-Nossa Caixa, Bradesco, Santander-ABN e Caixa Econômica Federal), a concentração de depósitos chega a quase 80% apenas nessas instituições. A especificidade no caso, governo Lula, é o fortalecimento do sistema financeiro nacional com o surgimento do grupo Itausa (Itaú-Unibanco) em contraposição ao período FHC de privatizações de bancos e internacionalização do sistema.

Com o apoio do BNDES, houve ainda aquisições mais discretas, mas relevantes, embora longe dos bilhões dos negócios citados anteriormente. Em 2008, a Totvs (softwares de gestão) comprou a Datasul com ajuda de R$ 404 milhões do BNDES; ambas têm um terço do mercado. Outro negócio do ano passado foi a compra da Azaléia pela Vulcabrás, que recebeu R$ 314 milhões do BNDES.

A criação de empresas nacionais fortes, competitivas, com escala de produção suficiente que lhes dê um papel relevante no mercado mundial, tem sido um dos objetivos principais do BNDES no governo Lula. Faz poucos dias, o governo brasileiro abriu um escritório do BNDES em Londres para estimular voos mais altos do capital nacional. Luciano Coutinho resume a nova fase do banco: “A prioridade do BNDES é apoiar o desenvolvimento brasileiro e dar apoio a empresas brasileiras competentes e competitivas que queiram uma atuação internacional”.

Sobre a ação do BNDES, poder-se-ia dizer que Lula reedita o governo Vargas e JK. Porém, atente-se para o fato de que o nacional-desenvolvimentismo praticado pelo governo Lula é distinto do praticado na Era Vargas. No período anterior, os investimentos realizados pelo Estado constituíram a formação de um capital produtivo sob controle do próprio Estado. Foi assim que surgiu a CSN, a Companhia Vale do Rio Doce, a Petrobras, a Eletrobrás, o sistema Telebrás. Foram essas empresas que possibilitaram a modernização – conservadora – do país e o alçaram a uma das potências econômicas mundiais.

Hoje, o nacional-desenvolvimentismo mudou de coloração. Ele presta-se antes de tudo ao fortalecimento do capital privado. Nas palavras de Luciano Coutinho, presidente do BNDES, “o que determina um empréstimo é a consistência empresarial do negócio”. Em segundo plano, “se além disso, a operação fortalece empresas de capital nacional, é bom para o País”.

É dessa forma que se explicam os generosos subsídios não apenas para fusões, mas também para a Vale do Rio Doce e para a Embraer. A irritação de Lula com as duas empresas durante a crise econômica deve-se ao fato de que o presidente considerou injustificável que empresas recebedoras de aportes do Estado demitissem ao primeiro sinal da crise.

Atente-se para o fato de que o dinheiro público do BNDES lastreado sobretudo pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) está sendo utilizado em muitos casos para irrigar empresas que foram privatizadas, como é o caso da própria Vale e das empresas de telefonia. Essas mesmas empresas, por ocasião da privatização, receberam transferência de recursos públicos (a primeira revolução silenciosa). Agora, novamente o banco entra com recursos favorecendo as mesmas empresas, mas em mãos privadas. Trata-se de um capitalismo sem riscos.

Como destaca o jornalista Vinicius Torres Freire, “afora múltis, as maiores exportadoras são estatais ou tiveram mãozinha do Estado”. Segundo ele, “a lista das maiores empresas exportadoras do Brasil revela muito do que foi e ainda é a formação e a propriedade do grande capital no país. As três líderes na exportação são ou foram estatais, criadas pelo Estado quando não havia investimento privado em seus setores: Petrobras, Vale e Embraer (se algumas dessas empresas vieram a se tornar monopolistas ineficientes, ou quase isso, é outra história)”. O jornalista comenta que “examinando o ranking da exportação, veem-se genes estatais em quase todos os pedigrees da grande empresa nacional – e até no das múltis”.

Os recentes ataques de Fernando Henrique Cardoso e Armínio Fraga a Lula devem ser lidos nesse contexto anterior, no qual o Estado joga um papel decisivo.

O Estado investidor. As grandes obras de infra-estrutura
Ao lado do ‘Estado financiador’ na criação e/ou fortalecimento de grupos de capital privado nacional, o governo aposta em outra vertente do nacional-desenvolvimentismo, através do ‘Estado investidor’. A vertente do ‘Estado investidor’ se manifesta no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi saudado como a retomada do ideário desenvolvimentista e até mesmo o fim da era Palloci, período que ficou conhecido como a continuidade da política econômica do governo de Fernando Henrique Cardoso orientada pelos pilares da disciplina fiscal e monetária.

Quando do seu lançamento, no início de 2007, vários economistas vibraram com o programa. Os economistas Ricardo Carneiro, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e João Sicsú da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), interpretaram o PAC como a saída de cena da "mão invisível do mercado" e o reconhecimento de que o Estado joga um papel fundamental na indução do crescimento econômico do país.

Na opinião de Paulo Nogueira Batista, “o PAC reflete uma nova concepção em que o Estado volta a ter um papel mais ativo na promoção do desenvolvimento, como investidor em áreas estratégicas e indutor de investimentos privados". "O PAC significa uma mudança na orientação da política econômica", disse Nogueira Batista Jr. na oportunidade. Outra voz, próxima ao PSDB, a do economista Yoshiaki Nakano, diretor da Escola de Economia de São Paulo da FGV, destacou que "o PAC tem um grande mérito: trouxe de volta à agenda do governo o crescimento como prioridade, demanda da sociedade brasileira. É o governo reassumindo a sua verdadeira função: a de promover crescimento rápido e sustentado".

Delfim Netto disse na época que “o setor privado precisa de duas garantias para investir: a de que haverá crescimento e a de que não faltará energia. Se houver essas duas garantias, os investimentos virão”, disse ele. "A novidade no PAC está no método de fazer política econômica, não nos novos projetos anunciados, ou nos recursos adicionais disponibilizados”, disse, por sua vez, o economista Luís Nassif. Segundo ele, “o PAC dá um passo decisivo para mudar o eixo da discussão econômica".

Elogios ao programa vieram sobretudo do capital produtivo nacional, considerando-se que o PAC anunciou investimentos pesados na área da infra-estrutura, principalmente em três grandes áreas: Logística (transportes), Energia e Infra-Estrutura Social e Urbana. Jorge Gerdau Johannpeter, incensado pelo capital nacional e tido como uma referência do sucesso do capitalismo brasileiro, afirmou que "foi preciso encher o saco do Lula para sair o PAC".

Em síntese, o PAC é de um conjunto de grandes obras de infra-estrutura para alavancar o crescimento econômico do país. Entre as principais, encontra-se a construção de hidrelétricas – Belo Monte, Santo Antonio e Jirau, – a transposição do Rio São Francisco, a retomada do programa nuclear, a construção e/ou duplicação de rodovias, como a polêmica BR 319. Há ainda investimentos em ferrovias, hidrovias, portos, aeroportos, saneamento, habitação popular.

No caso das grandes obras, como as hidrelétricas, desconfia-se que os grandes beneficiados serão grupos de grande porte, como Votorantim, Vale do Rio Doce, CSN, Alcoa e Gerdau. Também no caso da transposição das águas do São Francisco, avalia-se que o mesmo servirá sobretudo de incremento da indústria e do agronegócio, da produção de frutas para a exportação e da carcinucultura.

O governo considera as obras do PAC, os grandes projetos de infra-estrutura, como indispensáveis para a retomada do crescimento econômico, a geração de emprego e a distribuição de renda. Parcela do movimento social, por sua vez, vê o programa como grande beneficiador dos interesses do capital. Na visão dos movimentos sociais, outros investimentos como em saúde, educação, reforma agrária, seriam prioritários em relação aos bilhões destinados às grandes obras.

Contradições
Há ainda uma crítica muito forte vinda do movimento social sobre o fato de que o PAC se coloca na contramão da crise ambiental. Um dos motivos da queda da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, foi a disputa em torno das licenças ambientais para as obras do PAC. A ministra resistia aos pedidos de agilidade das licenças e foi derrotada internamente no governo, sobretudo na queda de braço com a ministra Dilma Roussef, responsável pela condução do PAC.

Na visão de setores do movimento social, o PAC é refém de um modelo de desenvolvimento preso ao século XX. Nesse sentido, o PAC coloca-se de costas para a problemática ambiental e reafirma a lógica produtivista da sociedade industrial. Exatamente no momento em que se fala em descarbonizar a economia, o país reafirma um modelo tributário ainda da Revolução Industrial.

Particularmente Lula, no afã de reeditar o milagre do período JK, já explicitou verbalmente que considera essa visão dos movimentos sociais um entrave para o crescimento do país. A “cabeça” de Lula está presa à sociedade industrial e daí a sua dificuldade em incorporar o caráter do movimento ambientalista que prenuncia uma sociedade pós-industrial. “Ele [Lula] acha importante a preservação, mas, entre um cerradinho e a soja, ele é soja. O ambiente é uma questão importante, mas não é decisiva. O que é decisivo é a economia”, já afirmou Gilberto Carvalho, chefe de gabinete de Lula.

Mas também grande parte da esquerda e até mesmo parcela do movimento social brasileiro é tributária de um jeito de pensar e agir preso às categorias da sociedade industrial, o que justifica a dificuldade de assimilação em sua agenda de temas que estão para além dessa sociedade.

Para outros, entretanto, o Brasil está perdendo o bonde da história, exatamente por uma visão obtusa de desenvolvimento. O país não percebe, ou não quer perceber, que é um dos poucos países que poderia oferecer uma alternativa à crise ecológica. O ambientalista Washington Novaes chama a atenção para este fato: “Um país que tem a biodiversidade que o Brasil tem, os recursos hídricos, a insolação o ano todo, enfim, com a riqueza que o país tem, deveria ter uma estratégia que colocasse esse fator escasso no mundo numa posição privilegiada como base de políticas. Mas essa estratégia não existe”.

Nesta perspectiva, e do que foi descrito anteriormente sobre o PAC, é importante o alerta de José Eli da Veiga. Segundo ele, não dá mais para fazer essa separação [da economia com o meio ambiente]. Diz ele: “As pessoas que continuam a separar economia e meio ambiente não entenderam nada. Há duas questões no mundo hoje em termos de décadas e em termos de século XXI e, ou o Brasil se insere nisso ou está perdido. Essas duas questões são: o aquecimento global e a ressurreição da China. O Brasil tem que ser competitivo, mas, ao mesmo tempo, com sustentabilidade ambiental”.

Nesse contexto do debate sobre a concepção de desenvolvimentismo que permeia o governo Lula, faz-se necessário uma menção ao Pré-Sal. O pré-sal, tem dito o presidente Lula, é o “passaporte para o futuro”. Os recursos seriam utilizados para resgatar o débito para com a questão social brasileira – aplicados preferencialmente em educação e em programas para reduzir a pobreza. Reeditando os tempos da campanha ‘O petróleo é nosso’, Lula afirmou que o petróleo não pode ficar na mão de meia dúzia.

O tema do pré-sal é dos mais importantes e se insere no debate de modelo de desenvolvimento do país. Até o momento, a decisão do governo vai na linha de criar um novo marco regulatório, no qual as decisões mais importante são: parceria do Estado com a iniciativa privada na exploração do pré-sal – o sistema de partilha; criação da Petrosal, e a criação de um fundo social. O movimento social vê o projeto como um avanço, mas considera-o insuficiente e defende o total controle do Estado sobre o Pré-sal. O tema envolve ainda a contradição de se apostar investimentos vultosos no desenvolvimento de uma fonte energética suja e finita, num momento em que o mundo se esforça para ampliar o uso de fontes limpas e renováveis.

O projeto de conciliação nacional
Hegemonia às avessas?

A segunda revolução silenciosa também tem outra faceta: a política. A chegada do PT ao Estado não significou rupturas com o status quo anterior. Pelo contrário, poder-se-ia afirmar que o PT no poder desconstruiu a hegemonia – no sentido gramsciano – que anteriormente conquistou na sociedade. Lula no poder praticou uma “hegemonia às avessas”, diz o sociólogo Francisco de Oliveira, ou seja, a classe dominante aceitou ceder aos dominados o discurso político, desde que os fundamentos da dominação que exerce não sejam questionados.

Se por um lado é inegável que Lula alterou a rota do modelo econômico, principalmente no segundo mandato, por outro, não mudou a lógica de funcionamento da política, a concepção de Estado patrimonialista continua sobrepondo-se à concepção de Estado republicano.

A base de sustentação do governo Lula trouxe a tona figuras políticas associadas aos métodos políticos da Velha' República - práticas coronelistas que agregam autoritarismo, assistencialismo e clientelismo com a expertise de se valer da presença no espaço público para atingir objetivos privados. José Sarney, Jader Barbalho, Romero Jucá, Geddel Oliveira, entre outros, que recentemente na história política brasileira foram vistos como a junção de tudo o que se tem de pior na política, foram resgatados, principalmente no segundo mandato de Lula.

A ruptura prometida com a Velha República e inclusive com a Nova República, através do surgimento do PT e de Lula que arrombaram a política nacional pela "porta dos fundos", não se efetivou. A ampla coalizão do governo é reveladora desse processo. Lula orienta-se antes de tudo pelo pragmatismo. Incorporou as principais forças políticas e econômicas do país – do agronegócio ao sindicalismo, do monetarismo ao desenvolvimentismo, do capital produtivo ao capital financeiro.

Se na economia Lula incorporou JK – o neo-desenvolvimentismo abordado anteriormente –, na política Lula incorporou Vargas. Na análise do sociólogo Werneck Vianna, Lula evoca o Estado Novo do período getulista. “Qual foi a operação que o Estado Novo getuliano fez? Exatamente esta: tudo o que era vivo na sociedade ele trouxe para si. Tal como agora. Trouxe para si e, de cima, formula políticas para a sociedade”, diz ele.

Segundo o sociólogo, “um governo que absorve as representações corporativas de trabalhadores e empresários, com um chefe de Executivo carismático a mediar interesses conflitantes, fortalecido pela crescente centralização do Estado”. “Ele [Lula] tem força, carisma, para segurar essa colcha e essa federação é boa para todos”.

A interpretação de Werneck Vianna é a de que o governo Lula engoliu a todos. O movimento social grita, reage, mas no limite não rompe com o governo; a direita esperneia, protesta, mas rende-se ao governo de coalizão; o capital produtivo e financeiro reclama, mas está contente com Lula. No máximo o presidente, deixa “que os dissídios internos amadureçam e no final arbitra e decide”.

Lula tornou-se o conciliador de classes. Na opinião de Werneck Vianna, o presidente lidera uma "comunidade fraterna sob comando grão-burguês", em que ele "cimenta a unidade de contrários", mas com a hegemonia concedida ao grande capital rural e urbano”.


Figura de Lula. Síntese da modernização conservadora
Na realidade, Lula é resultado de dois grandes movimentos que se desenvolveram simultaneamente na sociedade brasileira e, no governo, optou pela síntese desses movimentos e não o rompimento.

De um lado, Lula é produto da modernização conservadora, ou seja, Lula não existiria sem a Era Vargas – o Estado nacional-desenvolvimentista que industrializou o país e instaurou a legislação trabalhista e a estrutura sindical. Mas para além de Vargas, Lula também é resultado do período JK, que abriu o país para o capital transnacional e trouxe as montadoras. O ABC do qual emerge Lula é uma síntese dos governos Vargas e JK – o setor de ponta do capitalismo brasileiro da época e símbolo da modernização conservadora.

Porém, a modernização trouxe consigo o seu lado perverso, a gritante concentração de renda, o desenvolvimento desigual, a ausência das reformas sociais, os parcos e insuficientes investimentos na área da educação, saúde, saneamento e reforma agrária. O Brasil cresceu dividido, desigual, dual. Convivem num mesmo país, dois países. Temos o Brasil moderno, inserido globalmente, nação emergente, 8ª economia mundial. Mas, temos o Brasil miserável, da fome, da classificação do 70ª IDH, das metrópoles inchadas, do drama na saúde e na educação.

Lula também é resultado desse Brasil. É produto da incorfomidade dos movimentos sociais, da luta contra a modernização conservadora, da luta pela Reforma Agrária, da distribuição de renda, da urgência das reformas estruturais na saúde e na educação.

A grande aposta foi a de que Lula no poder faria um governo sintonizado com o seu histórico de movimento social. Na opinião do sociólogo Francisco de Oliveira, esperava-se de Lula um governo reformista “no sentido clássico que a sociologia política aplicou ao termo: avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participação nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo”.

O que se viu, diz ele, é que “os resultados são o oposto dos que o mandato avalizava”. Pesou diz o sociólogo, “o eterno argumento dos progressistas-conservadores - caso, entre outros, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - é que faltaria, às reformas e ao reformista-mandatário, o apoio parlamentar. Sem sustentação no Congresso, o país ficaria ingovernável. Daí a necessidade de uma aliança ampla. Ou de uma coalizão acima e à margem de definições ideológicas. Ou, mais simplesmente, de um pragmatismo irrestrito”.

Lula não rompeu de todo com a modernização conservadora. Optou por um modelo de desenvolvimentismo que privilegia o capital nacional e daí a tese da reorganização do capitalismo brasileiro abordada anteriormente. Modelo esse, entretanto, que não é avesso ao capital transnacional.

O sociólogo Werneck Vianna, acredita que o Brasil se tornou um "global player" e vive a "hora da virada". "Vamos para uma escala de desenvolvimento que vai reiterar as mais doces expectativas que acalentamos nos anos 50 e 60", disse o professor do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio). O problema, continuou, é que todos os setores "se aninharam no interior do Estado", do agronegócio aos sindicatos, passando pela indústria paulista. Esse Estado "verticalizado e centralizado", por sua vez, se diz "representante de todos", o que esvaziaria o debate público. "A arca do tesouro vai servir a quem?", perguntou, referindo-se ao petróleo do pré-sal e às antigas demandas por justiça social. "Vamos organizar o capitalismo numa social-democracia avançada. Sim ao Estado forte, mas sob controle da sociedade, não sobreposto assimetricamente a ela", pregou.

Daí a tese de Werneck Vianna: “a expansão brasileira, a projeção da economia do país no mercado interno e no mercado externo é monopólio de um grupelho, dos poderosos do agronegócio, das finanças, da grande indústria. A hegemonia é desses grandes potentados”. É essa hegemonia que Lula não feriu de morte e que continuará dando as cartas a partir de 2011, seja quem estiver no Palácio do Planalto.

Sobre as eleições de 2010, o economista Márcio Pochmann, presidente do IPEA e o sociólogo Werneck Vianna, travaram um diálogo faz poucos dias no encontro anual da Anpocs (Associação de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), em Caxambu (MG). Pochmann disse que há agora "uma maioria política" capaz de deixar para trás o projeto de "integração passiva e subordinada" do Brasil ao mundo. Mas, para ele, ainda está em jogo que tipo de desenvolvimento o Brasil terá. "Teremos a mesma dinâmica do século passado, baseada em casas, carros, bens de consumo duráveis? Ou um desenvolvimento ambientalmente sustentável?", perguntou.

Pochmann defendeu que a disputa entre PT e PSDB pela "condução do atraso brasileiro" na eleição de 2010 definirá a continuidade do projeto de "capitalismo organizado" ou a volta à "financeirização" não produtiva. Os possíveis candidatos tucanos "têm menor possibilidade de se aliar às forças do produtivismo", disse. Werneck Vianna minimizou. "Mesmo o Serra vai manter esse projeto, com modulações próprias", disse sobre o governador paulista, possível candidato do PSDB à Presidência.

Em síntese, tudo leva a crer que a reorganização do capitalismo brasileiro conduzido pelo governo Lula – impulsionado pelo Estado financiador e pelo Estado investidor – e que de sobra deu musculatura para um ainda raquítico Estado social –, não sofrerá rupturas com as eleições de 2010. O que ser quer dizer é que haverá continuidade do atual modelo, na economia e na política, e tudo indica por muito tempo.

A crítica relevante é de que o modelo em curso não atinge os interesses dos potentados – agronegócio, finanças, grande indústria, oligarquias políticas – que sempre hegemonizaram o poder. Essa nova maioria obstaculiza reformas sociais, retomadas por Lula timidamente, de maior alcance e profundidade na direção de ruptura à concentração de riqueza.

O projeto de poder da esquerda encontra-se derrotado. O projeto nacional popular em debate nos anos 80 foi descaracterizado pelo PT e pelo governo Lula no poder. Neste momento histórico, quem retoma o debate da possibilidade de um projeto de características nacional popular é o Movimento Consulta Popular, porém o faz às margens do poder. Resta uma indagação de fundo: ainda é possível um projeto nacional popular?

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