segunda-feira, 5 de outubro de 2009

MERCEDES SOSA: MUITO MAIS DO QUE UMA CANTORA EXTRAORDINÁRIA

Além de uma voz prodigiosa, Mercedes Sosa tinha qualidade como a honestidade intelectual e o compromisso artístico. Prestigiosa, ergueu-se com o tempo em um símbolo da luta pela liberdade. Uma vez, ela disse que cantava para não morrer. Além da frase, ideal para uma manchete jornalística, qualquer pessoa que tenha passado pela sala de sua casa na esquina Carlos Pellegrini e Arroyo pôde constatar sua compulsão irreprimível por cantar. Eram instantes íntimos e de uma pureza artística total: no meio da conversa, Mercedes Sosa buscava qualquer desculpa para cantar para o jornalista. Uma frase, uma lembrança, uma nova canção, o que fosse. Às vezes, o canto se interrompia com um choro. Mas ela cantava. Acreditava que era o seu melhor modo de expressão. Tinha razão.

Outro detalhe de destaque era a sua honestidade intelectual. De alguma forma, ela estava além de tudo. Sua incorreção política levou-a a dizer que não era amada pelo povo, que as pessoas humildes gostavam de Horacio Guarany, que ela era "mais da classe média". Ou a defender a presidenta Cristina Kirchner no pior período de seu mandato. Por essa incorreção, ela se transformou na artista que foi: não entendia de especulações ou projetos de marketing. Seu guia era sua própria, estranha intuição.

Quando jovem, gostava da velocidade, das empanadas de sua mãe e do whisky. Já mais velha, se recostava na leitura, em algumas poucas amigas e no rádio, seu meio de comunicação preferido. Depois da separação de seu segundo marido, escolheu a serena solidão. Saía pouco de sua casa.

Escutava música clássica e estudava repertórios. Apesar de seu gênio natural, do prodígio de sua voz, era tenazmente estudiosa e educava diariamente as suas cordas vocais. Vamos sentir saudades dessa voz. Vamos sentir saudades de seu repertório, esse cancioneiro que embelezou e que transformou em clássicos. Músicas como "Gracias a la vida", "Canción con todos", "Un son para Portinari", "Alfonsina y el mar" praticamente lhe pertencem.

A militância política, a proibição, o exílio e o regresso em 1982 lhe outorgaram uma dimensão mítica. Configurou-se assim uma figura idolatrada em todo o mundo, com um poderoso componente simbólico: aqui, mas ainda mais na Europa, Mercedes Sosa é sinônimo de luta, resistência e liberdade. Tradicional e moderna, rural e mundana, agreste e sofisticada, foi nem mais nem menos do que a cantora argentina mais importante da história. Ainda hoje estremecemos ao recordá-la no meio do palco, sob um feixe de luz definindo seus perfis indígenas, o bombo leguero de um lado. Recordá-la e pensar em uma zamba a ponto de começar. Uma zamba, o bombo e a voz de Mercedes Sosa. Poucas paisagens estão tão próximas da perfeição. Esse mundo perfeito hoje aparece quebrado.

A reportagem é do portal do jornal Clarín, 04-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

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