O fenômeno não é recente, mas o silêncio estrondoso da rede filantrópica estabelecida em torno da onda da responsabilidade social diante dos efeitos da crise econômica atual é sepulcral. A sem-cerimônia com que as empresas despojam trabalhadores de seus empregos e ao mesmo tempo promovem ações sociais de fim-de-semana é algo estarrecedor, se não fosse em parte previsível. A agenda social do terceiro setor não pode parar, mesmo que sem objeto, pois ela é o lastro onde se pode desenvolver o discurso de que a uns cabe dar e a outros entrar na fila para receber. Este é um terreno sem disputa e quem está sem emprego também aí está sem lugar.
O enfraquecimento da representação popular e dos espaços de interlocução pública interessa muito a essa visão compartimentada da sociedade que coloca lado a lado a cidadania e a exclusão social, como um fundo mútuo de atenção a quem se nega a presença do Estado mas todavia o capitaliza através de redes empreendedoras que se alimentam de um ciclo econômico soturno, onde o que se oferece as pessoas é um perpétuo vir-a-ser. Nessa perspectiva, algum dia o excluído virá a ser um cidadão. Em algum momento o desempregado virá a ser patrão. E assim exime-se o modelo sócio-econômico de oferecer dignidade e respeito ao trabalhador. O problema da responsabilidade social é que ela não responde a quem não está incluído/a no sistema de produção. Quem lhe responde, em última análise, é a sociedade penal, que num primeiro momento lhe confisca o direito à educação, Essa noção de que as chagas sociais são remediáveis sem que se adote em efetivo um modelo minimamente honesto de produção e distribuição de riquezas é como um ovo órfão fora da chocadeira. É a clara desesperança que se pode encontrar na face de todos aqueles que esperam porque precisam e também porque não lhes resta outra alternativa. Para estes, a cidadania é um termo remoto, de significado impreciso, porque lhes falta a perspectiva de pertencer com dignidade no espaço público. Esse é o resultado a que chega uma sociedade que concentrou no potencial de consumo a expectativa de bem-estar social. Se por um tempo a dinâmica de filantropização da pobreza funcionou a contento e profissionalizou-se a ação social civil autônoma, esse "método" parece ter chegado a um esgotamento de credibilidade, até mesmo porque será muito difícil transformar em resultados socialmente palatáveis os efeitos do desemprego e da recessão, por exemplo.
Resta verificar através de quais argumentos a sociedade vai procurar assimilar não apenas a crise econômica atual, mas qualquer tentativa de reação a ela. Se será simples como obter crédito nas ruas das metrópoles, se serão sacrificados, como sempre, os trabalhadores, pelo arrocho de salários e pela cassação terminal de seus direitos através do estímulo a informalidade ou, enfim, por uma desejável determinação em enfrentar o modelo com propostas que envolvam a participação da sociedade e não apenas da criatividade de publicitários. Por uma questão de lógica, é perda de tempo qualquer tentativa de compatibilizar a "nova assistência social" com a total indiferença com que as pessoas engrossam as fileiras da exclusão social. Apesar de que a lógica já está ficando acostumada aos atentados que se praticam contra ela. E nós, infelizmente, também.
Lucio Carvalho *
Editor-chefe da Inclusive - Agência para Promoção da Inclusão
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