A novela em torno do Ministério dos Transportes já dura algumas semanas e, segundo tudo indica, ainda não chegou ao fim. Prossegue a faxina empreendida pela presidente Dilma Rousseff que, conforme ela própria, não levará em conta nem o partido nem a posição política. Uma série de estátuas ligadas aos partidos da base aliada, especialmente o PR, vão caindo uma a uma, num efeito dominó.
Rumores mais recentes indicam, entretanto, que a faxina deve estender-se a outros Ministérios e órgãos públicos. No Planalto Central é possível imaginar uma placa virtual: precisam-se técnicos nas diversas áreas governamentais. "Políticos de carteirinha”, ou de cadeira cativa, parecem estar sobrando.
Em meio a esse cenário de depuração, não dá para escapar de uma pergunta que salta à tona de todas as conversas de rua ou de praça pública, de boteco ou de cabeleireiro, de feira livre ou de ponto de ônibus, das filas de INSS, dos corredores de inúmeras instituições, da mídia em geral e de cada um de nós em particular: será que, dessa vez, tudo isso é para valer? A pergunta não tem nada de inocente. Afinal, a população brasileira já assistiu várias vezes a esse filme.
Haja vista a trajetória dos "mensalões” e o destino dos implicados, quase todos reintegrados na área política, inclusive com o voto legítimo dos eleitores. Mas a pergunta é menos inocente ainda se lavarmos em conta que estamos em vésperas de ano eleitoral, que por sua vez, aponta para o horizonte das eleições majoritárias. Isso para não mencionar as obras vinculadas à preparação da Copa do Mundo (2014) e às Olimpíadas (2016).
A essa altura, emerge quase naturalmente um tema espinhoso da história deste país. De acordo com os clássicos da economia brasileira, esta se assenta e sobrevive sobre um tripé: latifúndio, trabalho escravo e monocultivo de exportação (Caio Prado Júnior e Celso Furtado, entre outros). Desde o tempo das sesmarias e dos ciclos econômicos (pau-brasil, cana-de-açúcar, algodão, borracha, cacau, café...), ainda nos regimes da Colônia e do Império, a chave é a mesma: o Brasil nasce viciado pela grande extensão de terra, pela superexploração do trabalho e pelo fornecimento de matérias primas para as metrópoles.
Ou seja, cresce de cara virada para a Europa, depois os Estados Unidos, e, ao mesmo tempo, de costas para as necessidades básicas de sua população mais carente. Não se trata de retorno ao feudalismo, como querem alguns. Desde o século XVI, o país já surge perfeitamente integrado na dinâmica do capitalismo mercantil, como economia periférica girando em torno dos interesses do Império Britânico. Muda o sol, mas a órbita será sempre a mesma.
A chave serve de metáfora não só para explicar o que ocorre com a atual política econômica internacional, mas também para constatar que o esquema se repete dentro do próprio território nacional, onde as regiões subdesenvolvidas caminham a reboque dos centros econômicos mais dinâmicos. Histórica e estruturalmente, predomina o apoio incondicional ao agronegócio de grãos e de gado, à grande empresa agroindustrial, à exploração do subsolo, e assim por diante.
Também predominam formas de trabalho degradantes, com jornadas extensivas e exaustivas, além do uso de mão de obra escrava e infantil. E predomina, por fim, a produção em grande escala, chamadas hoje em dia commodities, para abastecer o mercado internacional ou o transporte privado da classe média interna: soja, carne, minérios, madeira, etanol da cana-de-açúcar... Para não falar das espécies de fauna e flora comercializadas clandestinamente.
Mas o esquema se reproduz e se fortalece não apenas na esfera da agricultura. Em termos figurados, não seria exagero falar, por exemplo, do latifúndio das comunicações, do fast-food (comida rápida), das telefonias, das redes de supermercados, da indústria dos remédios, da produção de tecidos, da construção civil com suas empreiteiras... E até do futebol, patrimônio intocável e hereditário de meia dúzia de cartolas. Tampouco seria exagerado constatar aí formas de exploração trabalhista análogas ao tempo da escravidão, envolvendo com frequência crianças e adolescentes, como já vimos, sem contar o uso e abuso dos imigrantes irregulares, explorados na proporção de sua vulnerabilidade. E o tripé se complementa quando nos damos conta dos interesses internacionais que comandam parte considerável dessas fatias do marcado, tão cobiçadas quanto lucrativas, incluindo aí o petróleo.
Até mesmo o exercício da política nos três poderes dificilmente escapa dessa leitura. Com uma frequência inusitada, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário repartem entre si os lotes do poder, do tráfico de influência e do orçamento público. O leilão dos cargos políticos, o balcão de negócios das emendas parlamentares, o toma lá dá cá, o compadrio e apadrinhamento, embora pareça coisa das Mil e uma noites, é prática comum na estranha nave espacial do Planalto Central.
Como também o é a compra e venda de votos, através de uma série de artimanhas (maracutaias), com o objetivo de manter a todo custo a cadeira cativa no Senado, na Câmara, em algum Ministério ou posto no Judiciário. São as famosas "tetas do Estado”, vaca generosa que nutre histórica, estrutural e hereditariamente as benesses de não poucas "raposas oligárquicas”. Surgem assim nos corredores obscuros dos três poderes, e de outros órgãos e/ou instâncias do aparelho de Estado, o vício do patrimonialismo, há tempo denunciado por Raymundo Faoro.
Grandes conglomerados transnacionais, empresas nacionais e multinacionais, acionistas bilionários do setor financeiro, proprietários de imensas extensões de terra, beneficiados das concessões para os meios de comunicação ou a extração mineral, companhias estatais, grandes produtores... Eis a procissão dos que se juntam aos interesses privados das velhas oligarquias ou de grupos corporativistas, partidários e de classe. Na expressão consagrada de Gilberto Freire, constituem os moradores da Casa Grande e do Sobrado, em contrapartida aos moradores da Senzala ou Mocambo.
Seguindo a chave do tripé, privilegia-se, primeiramente, a produção de larga escala, em detrimento do micro, pequeno e médio produtor, e em maior prejuízo ainda da agricultura familiar ou do artesanato; em segundo lugar, segue incólume e imune o uso de formas de trabalho há séculos execradas e banidas da história, até mesmo por economias capitalistas mais arejadas; por fim, é o mercado globalizado que dita não somente a divisão internacional da produção, mas também os preços de cada produto.
A conclusão é que o país segue refém das leis férreas do mercado globalizado: capitalismo mercantil, depois industrial e agora financeiro. Valem os exemplos do petróleo, da carne bovina ou dos grãos. Em todos eles, o Brasil é praticamente auto-suficiente. Mas isso não impede que os preços desses produtos (e de tudo o resto) sejam calibrados de acordo com a lei da oferta e procura internacional. Não há uma política econômica que garanta à população brasileira o direito de adquirir mais facilmente aquilo que sua terra produz em abundância.
Daí a sina de país rico em recursos naturais e povo pobre, ou de "mendigos sentados em montanhas de ouro”, como lembra Eduardo Galeano nas Veias abertas da América Latina. Ou ainda: onde a terra foi mais rica, a população se tornou mais empobrecido, como no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, abundante em pedras preciosas. Ou como na região de Potosí, Bolívia, onde a riqueza da prata gerou o deserto da miséria.
Tudo isso é laboriosamente planejado na calada da noite ou à plena luz do dia. O pior é que, em geral, não é a oposição que faz emergir os efeitos desse vírus político corroendo por dentro o organismo da sociedade brasileira. Neste particular, situação e oposição parecem cúmplices e coniventes, contentando-se normalmente com a parte do bolo que lhes cabe. Quem traz à tona esses tecidos podres e necrosados do corpo estatal costumam ser as câmeras, holofotes e microfones da mídia. Às vezes, é certo, de forma sensacionalista e espetacular, no afã de mostrar um "furo de reportagem”.
Mas pelo menos coloca o tema da corrupção e do abuso de poder na pauta do dia. Nãos poucos políticos, agarrados quais parasitas à seiva nutritiva dos impostos públicos, viram-se obrigados a desgrudar-se dessa mamata graças às denúncias de um jornal, de uma revista ou de um canal de TV. A história é longa e perderíamos muito tempo para elencar os casos, mesmo os mais notórios. Voltemos à pergunta: será que a faxina de Dilma Rousseff desta vez é para valer? Dados os casos recentes dos últimos governos, pairam dúvidas sombrias sobre o horizonte. E, cá entre nós, com toda a razão. Democracia? Mais de retórica que de fato!
Terminamos onde começamos: no "latifúndio” do Ministério dos Transportes. De pouco ou nada parecem valer a capacitação ou a idoneidade dos dirigentes. O que conta é a manutenção do patrimônio público nas mãos de um determinado grupo. A mesma regra, de resto, costuma ser seguida em outras instâncias da política, seja em termos federais ou estaduais e municipais.
Pe. Alfredo J. Gonçalves - Assessor das Pastorais Sociais.
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