Nos três primeiros artigos desta série, eu coloquei o foco mais sobre alguns aspectos do capitalismo global que o cristianismo e teologia da libertação precisam levar em conta. Neste quarto, eu quero propor algumas reflexões sobre um aspecto interno do cristianismo de libertação (CL) que pode provocar estranhamento em alguns leitores. Mas penso que é preciso correr risco de ser mal entendido e criticado.
Eu penso que a principal metáfora que norteou reflexões e ações do CL foi e, em muitos lugares continua sendo, a do Êxodo. É claro que Êxodo tem um fundamento histórico, mas a imagem da passagem da escravidão para a terra da liberdade "onde corre leite e mel”, foi usado como metáfora que oferece a estrutura de fundo para ações e pensamentos mais imediato e até para reflexões teóricas.
Para perceber melhor a importância da discussão sobre metáforas, é preciso lembrar que o pensamento humano é construído com o uso de metáforas. Sempre que precisamos fazer uma síntese ou oferecer uma visão global, utilizamos uma figura de um outro campo ou área como instrumento. Por ex., quando alguém diz que o mercado evoluiu como a natureza ou que o universo funciona como um relógio está se utilizando de metáforas. Este "como” mostra isso. E a escolha adequada de metáforas é importante porque elas influenciam e, de certa forma, direcionam o modo de pensar e de viver.
Contra uma teologia que colocava toda atenção no "sair do mundo em direção ao céu”, negando o valor da história humana, a TL deu uma grande contribuição chamando atenção para a o fato de que a missão do cristianismo se dá no interior da história humana. E para isso apresentou a metáfora do Êxodo como modelo fundamental do pensar e agir: a passagem da opressão para o Reino de Deus. Nas palavras de L. Boff, na década de 1970: que "'por um lado, a libertação é concebida como superação de toda escravidão; por outro, como vocação a ser homens novos, criadores de um mundo novo'."
A metáfora do Êxodo pressupõe que na "Terra prometida” não haverá nada que lembre a escravidão e será completamente novo, até com novo homem e nova mulher. Em termos de hoje, na nova sociedade que devemos construir não haverá e nem deverá haver nada que nos lembre do tempo da exploração e opressão, o mercado. Como a marca da opressão hoje é o sistema de mercado global, na nova sociedade não deveria haver nada de mercado, nada que nos lembre do capitalismo. Esta forma de pensar, muitas vezes inconsciente, leva alguns, por ex, a criticar de forma radical os governos Lula e Dilma, mesmo sendo ou tendo sido petistas porque eles, apesar de avanços na área social, não acabaram com o mercado. E se eles não lutam radicalmente contra o mercado estão fora do paradigma do Êxodo. É quase como "tudo ou nada”.
É interessante notar que no NT essa metáfora perde espaço. A história do povo de Israel e a situação histórica levam, por ex, a Jesusa optar por outras metáforas. Na imagem do "sal da terra”, por ex, o caminho não é de saída da opressão para liberdade, mas de imersão no mundo para modificá-lo a partir de dentro, aproveitando e interagindo com o que o mundo tem. Paulo de Tarso também opta por uma "estratégia” de missão que privilegia a criação de comunidades no interior do Império para modificá-lo desde dentro. Na minha juventude eu taxaria essas propostas de reformistas, mas hoje eu penso que a clássica divisão entre pastoral assistencialista, reformista e libertadora precisa ser repensada. (Eu analisei as questões dos dois últimos parágrafos com mais detalhes, e não de forma tão "bruta” como aqui, no livro "Deus em nós: o reinado que acontece no amor-solidário com os pobres”, co-autoria com H. Assmann).
A mudança de metáfora não é simplesmente escolha de uma outra imagem, mas pressupõe uma nova visão da realidade e das possibilidades históricas. "Sal da terra e luz do mundo” revela uma nova opção "estratégica” em relação ao êxodo. É claro que Jesus e o NT oferecem outros tipos de metáforas, mas estou propondo essas reflexões como provocação para repensarmos seriamente a metáfora do êxodo. Porque por mais que desejemos um mundo sem relações mercantis e mercado – que sempre provocam distorções sociais –, não é possível construir outra sociedade viável sem mercado e algumas outras instituições que existem no capitalismo. Vários delas existiam antes do capitalismo e vão (ou podem existir) após a sua superação.
Em uma situação como a nossa, a de Império Global (extremamente amplo e complexo), talvez seja interessante aprofundar a discussão sobre o uso de outras metáforas, como a do "sal da terra e luz do mundo” para nossas ações e reflexões.
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
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