sábado, 19 de março de 2011

TAREFAS DO CRISTIANISMO DE LIBERTAÇÃO (III): CRÍTICA DA LÓGICA SACRIFICIAL

No primeiro artigo desta série eu afirmei que o Império global hoje domina por sedução e que os sacrifícios religiosos continuam sendo oferecidos aos deuses, só que o deus de hoje é uma força impessoal (o sistema de mercado global) que domina as nossas vidas cotidianas e impõe sacrifícios de vidas dos mais pobres. No segundo, eu expus a tese de que é preciso superar a imagem da modernidade pintada pelo próprio mundo ocidental moderno e repensá-la, não como centrada na razão e emancipação, mas como racionalidade a serviço da irracionalidade da acumulação de capital à custa de escravidão, colonização e genocídios; emancipação construída sobre exploração de outros povos.

Neste terceiro, eu quero aprofundar o tema da lógica sacrificial. Para entender a importância deste tema, precisamos nos lembrar que nós vemos, analisamos e julgamos a vida pessoal, social e a dinâmica da sociedade através do que Hinkelammert chama de "marco categorial”, isto é, um conjunto de categorias articuladas por uma determinada lógica. E um das categorias fundamentais do Ocidente tem sido a de "sacrifício”.

Sacrifício (ato sagrado), no sentido mais primitivo, é uma oferenda – geralmente a vida de uma pessoa ou animal – que um sacerdote (pessoa sagrada) oferece a Deus, cumprindo com a exigência divina em troca de um benefício ou da suspensão de algum castigo. Nas teologias sacrificiais, Deus ou deuses são sempre exigentes, não dão nada de graça e nem perdoam. O não cumprimento das suas leis produz uma grande desgraça, por isso o contínuo oferecimento de sacrifícios para evitar a ira divina.

O segredo é a aceitação de um pequeno mal – como sacrificar a vida de alguém ou aceitar algum sofrimento na vida pessoal – para conseguir um bem maior. Assim, na lógica sacrificial, a imposição de sofrimento ou morte sobre alguns se transformam no bem. Isto é, a lógica sacrificial inverte o mal em um bem! É uma completa inversão de valores humanos-éticos em nome de deus, ou, segundo a crítica bíblica, em nome do ídolo.

Esta é a razão pela qual Jesus, retomando uma afirmação de Oséias, acusa o sistema social e religioso do seu tempo de não ter entendido que Deus quer misericórdia e não o sacrifício!

Infelizmente a cristandade – o cristianismo que se alia ao império – retomou a teologia sacrificial e assim reforçou a lógica sacrificial dominante nos impérios. Quando a sociedade crê que deus não pode salvar sem exigir sacrifícios, até mesmo do seu próprio filho amado, é claro que vai aceitar como "natural” o discurso do sistema de mercado capitalista quando fala dos sacrifícios necessários exigidos pelo mercado. Assim como aceitou a escravidão e exploração colonial como sacrifícios necessários para o progresso e, também, para a salvação da alma desses sacrificados.

Sem uma crítica radical à lógica sacrificial presente no inconsciente coletivo ou no fundo das nossas culturas, a crítica radical ao sistema de mercado global não será eficaz. Para isso, é preciso começar com uma afirmação teológica básica: Deus não quer sacrifícios, mas sim misericórdia e justiça para os pobres e oprimidos! Esta é uma tarefa que a teologia e o cristianismo de libertação precisam assumir.

E a morte de Jesus na cruz? Jesus e os evangelhos não interpretaram a cruz como uma exigência sacrificial de Deus que deveria ser aceita. Pelo contrário, Jesus afirmou que ele dava a sua vida livremente, não como obediência uma exigência da lei divina. Isto é "dom de si”, doar a sua vida na luta pela vida dos mais fracos. Pedro, no primeiro discurso após pentecoste diz claramente que o Templo matou Jesus e Deus ressuscitou. A ação de Deus não está presente na crucificação, pois não era sua vontade, mas só na ressurreição para mostrar o erro da lógica sacrificial.

Os sacrifícios exigidos e aceitos só se justificam através do cumprimento das promessas da recompensa. Quando isto não ocorre, foi um sacrifício em vão e os sacrificadores não são mais vistos como sacerdotes, mas como assassinos. É por isso que os "sacerdotes” do Império dizem que a razão do não cumprimento das promessas do mercado para o mundo todo é que ainda faltam mais sacrifícios. Se reconhecessem que estão impondo sacrifícios em vão, eles se perceberiam como assassinos.

Por outro lado, quem doa sua vida pela vida do seu próximo, não faz por obediência a uma lei divina, mas livremente, deixando-se levar pela força interna da compaixão e do amor-solidário. Por isso, quem luta livremente por amor ao próximo, mesmo que não logre o objetivo político-social, não sente como se tivesse feito um sacrifício em vão. Sabe que a luta valeu por ela mesma, porque foi expressão da sua liberdade e solidariedade e assim se tornou mais livre e mais humano.

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo

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