"A força, a calma, a dignidade com que hoje esses japoneses enfrentam a gravíssima catástrofe demonstram que o homem clássico, como o conhecemos há milênios, ainda não está superado – como proclamava Nietzsche, esperando-o e ao mesmo tempo temendo-o –, mas ainda está dignamente no seu lugar."
Eis o texto.
Nestas horas, tem-se talvez a impressão de assistir ao fim do mundo ao vivo. Os abismos, a água e o fogo em furor que, no Japão, estão destruindo tantas vidas humanas e os seus lares chegam até as nossas casas. De repente, diante da natureza – por nós tão dominada, explorada, consumida –, sentimo-nos como os liliputianos diante de Gulliver. Ondas esmigalham grandes edifícios como brinquedos, automóveis e trens inteiros desaparecem como palha, o céu se incendeia.
Mas o que é essa chamada natureza, a qual os homens frequentemente se contrapõem – ora com a arrogância do dominador, ora com a angustiante humildade do culpado devastador –, como se também não fizessem parte da natureza, como se também não fossem eles natureza, assim como os animais, as plantas ou as ondas?
As catástrofes naturais induzem muitas vezes a pensativos e talvez inconscientemente complacentes lamentos sobre a punida soberba do homem que pretende dominar a natureza, sobre a técnica que devasta a vida. Todo desastre é bom para criticar toda confiança na técnica e no progresso. O apocalipse – imaginado na tradição, ora pelo fogo, ora pela água, agora confundidos na destruição provocada pelo terremoto – incute, em quem o olha como nós, ao vivo, mas de longe e protegidos, ou pelo menos pensando estar protegidos, um calafrio de susto.
Como ocorre frequentemente com o susto, a ele se misturam uma ambígua atração e uma compungida advertência sobre a fraqueza do homem e a sua falta de humildade com relação à natureza. Tudo isso se intensifica diante de desastres mais diretamente devidos a responsabilidades humanas, diferentemente do caráter mais decisivamente "natural" do terremoto e do tsunami que enfurecem no Japão e que não parece que possam ser colocados na conta da insensatez ou da desonestidade humana, como, ao contrário, por exemplo, no caso dos efeitos desencadeados pelos desmatamentos ou pela infame construção civil que, em muitos casos – não parece ser esse o caso do Japão agora atingido – não se preocupa, por incompetência ou avidez desonesta, com as medidas antisísmicas.
O orgulho do homem que, com a sua técnica subjuga a natureza, ou a invectiva contra esse orgulho partem de um erro: da contraposição entre o homem e a natureza e da contraposição, também falaz, entre natural e artificial. Como diz um grande hino à natureza escrito por Goethe – ou transcrito por um seguidor seu –, tudo é natureza, até aquilo que, aos nossos olhos, parece negá-la e é, pelo contrário, uma representação sua. Existe o mito de uma natureza pura e incorruptível, enquanto virgem de toda intervenção humana que a corromperia. Mas nem o mais puro e sadio vinho existe na natureza sem o agir de quem cultiva a vide e vindima a uva. Até os ninhos dos pássaros não existem sem a atividade destes últimos que os constroem.
Quem, como Goethe, tem o sentido profundo do pertencimento da espécie humana, como das outras espécies, à natureza sabe que o impulso do homem de construir uma tenda ou uma casa não é menos natural do que aquele que leva os castores a construir os seus diques que se opõem ao ímpeto, também natural, das águas.
O homem não está devastando "a natureza", mas está frequentemente cometendo um outro pecado, mais autodestrutivo do que destrutivo: está ameaçando não a natureza, mas a si mesmo, a sua própria espécie. Os fungos venenosos não são menos naturais do que aqueles comestíveis; as vastas extensões geladas de Plutão não são menos naturais do que as colinas toscanas em flor; os gases que saem dos canos de escapamento dos automóveis não são menos naturais do que o perfume das flores, porque são compostos por elementos químicos que fazem parte da natureza, da Criação.
Mais simplesmente, fungos venenosos, planetas gelados e gases tóxicos são letais para a nossa espécie, que, à "natureza", não importa mais do que os extintos dinossauros, mas que, para nós, ao contrário, conta. Tudo, entretanto, pertence à natureza das coisas, De rerum Natura. A chamada técnica não deve ser, portanto, demonizada como um pecado contra a natureza. É a sua desmesura, o seu abuso frequentemente louco e imbecil que devem ser denunciados, não com tons de hipócrita ou apocalíptica condenação da miséria do homem, mas com a clareza da razão, que não há de inclinar-se à natureza – de cuja evolução faz parte –, mas sim dar-se conta dos próprios limites, buscar o progresso sem se iludir com arrogância que ele é ilimitado, mas medindo-se com todos os problemas e os estragos que, porém, ele cria, e procurando entender, cada vez mais, quanto é necessário prosseguir e quanto é necessário parar ou até dar alguns passos atrás, posto que isso seja possível.
É essa advertência de um possível perigo que nos falta. Até vendo as imagens da tragédia japonesa, permanecemos tranquilos, estupidamente convictos de que jamais algo semelhante pode nos ocorrer, qualquer que seja o erro enorme que possamos cometer. Do mesmo modo, quando alguém morre, de câncer ou de infarto, somos pouco a pouco persuadidos de que isso jamais nos acontecerá. Essa inconsciência protetora do perigo caracteriza não só os indivíduos, mas também as civilizações, as culturas, as sociedades, certas de serem imortais. Porém, as civilizações têm as suas endorfinas, as drogas que as protegem da ansiedade de saber que, um dia ou outro, têm que morrer.
Não sei – e não tenho nenhuma competência para poder saber e entender – se o perigo representado pela ruptura do circuito de resfriamento do reator nuclear japonês e da explosão radioativa é a prova do equívoco de construir centrais nucleares semelhantes ou se, ao contrário, indica, como acredito – mas sem nenhuma certeza, dada a minha ignorância na matéria – o perigo sempre presente em toda atividade humana.
No seu artigo, tão vigoroso e convincente, publicado no Corriere della Sera, Massimo Gaggi colocou em evidência a racional e férrea vontade demonstrada pelo Japão na busca do crescimento, sem "desafios à sorte", na consciência dos riscos e na ativa preparação para enfrentá-los. Em geral, a atitude e o comportamento dos japoneses nessa circunstância dão uma grande prova da coragem, da firmeza e da calma com que o homem sabe, às vezes, fazer frente ao desastre. Essa dignidade e essa força moral não têm nada a ver com a soberba prometeica de quem pensa, com alegre inconsciência, que pode desafiar impunemente o equilíbrio necessário à sua espécie, considerando que essa forma da natureza que chamamos de técnica pode se livrar da antiga mãe, ou seja, da totalidade que a gerou e a compreende, como um ramo que pretendesse renegar a árvore, na qual e da qual cresceu, e ir embora por conta própria.
Se tantas reações antitecnológicas – assim como certos tons do “pathos” antinuclear – parecem ser irracionais, ainda mais festiva e autolesivamente irracional é a presunção com a qual, em nome de um progresso que, assim, deixa de o ser e de uma arrogância cientificista convicta de que a ciência é Deus, destroem-se florestas, desperdiçam-se energias, exaurem-se recursos sem pensar em como a Terra poderá alimentar um número sempre mais insustentável de esfomeados e em como se poderá viver em uma Terra sempre mais diferente daquela com a qual a nossa espécie está habituada.
Existe na espécie humana uma presunção de eternidade que a torna irresponsavelmente desperdiçadora da vida e que vai de encontro com presunções a uma possível transformação de si mesma. Estudiosos sérios falam de um nosso futuro próximo de ciborgues, de homens como híbridos de corpos humanos e integrações tecnológicas. É possível, teoricamente, um mundo só de mulheres, capazes de se reproduzir sem intervenção do homem. A engenharia genética promete – ou ameaça – seres humanos radicalmente diferentes de nós, a ponto de serem dificilmente definíveis de "nós".
Talvez está em curso uma radical transformação da nossa espécie, destinada a mudar o nosso modo de ser e de sentir. Em um mundo em que nasceriam só mulheres de mulheres, seria difícil, por exemplo, entender Heitor que brinca com Astianax, esperando que seu filho se torne maior do que ele, ou a paixão de Paulo e Francisca, coisas sem as quais não seríamos aquilo que somos.
Certamente, as espécies sempre se transformaram e continuam a fazê-lo. Mas, diferentemente do processo que levou dos organismos unicelulares (ou dos fragmentos do Big Bang) a Marilyn Monroe, a transformação da nossa espécie ocorreria em tempos brevíssimos ao invés de bilhões de anos, em tempos talvez insustentáveis para quem teria que vivê-los. Essa eventual transformação – irracionalmente desejada ou temida – nos aflige mais do que a nossa individual, porque nos conforta crer que, depois de nós, haverá crianças como os nossos filhos, mulheres e homens amáveis como as pessoas que amamos.
A força, a calma, a dignidade com que hoje esses japoneses enfrentam a gravíssima catástrofe demonstram que o homem clássico, como o conhecemos há milênios, ainda não está superado – como proclamava Nietzsche, esperando-o e ao mesmo tempo temendo-o –, mas ainda está dignamente no seu lugar.
A opinião é do escritor italiano Claudio Magris, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 13-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
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