Subversiva. Terrorista. Amante de baderneiros. Foi com alcunhas pouco elogiosas que os agentes do regime militar confinaram a freira Maurina Borges da Silveira nos porões da ditadura. Corria o ano de 1970 e os brasileiros sonhavam com o tricampeonato de futebol, embalados pela marchinha "Pra Frente, Brasil". O que se passou nos cinco meses de prisão da religiosa, a partir de outubro de 1969, quando foi detida no interior de São Paulo, ainda constitui segredo muito bem guardado nos arquivos da ditadura e do Vaticano. Mas o véu de sigilo começa a ser levantado.
Contribuiu para isso a recente publicação de Sombras da Repressão, resultado de 12 anos de trabalho da jornalista paulista Matilde Leone. Misturando ficção e realidade, Matilde remontou boa parte do sofrimento vivido pela única freira brasileira presa e torturada pela repressão. A prisão de madre Maurina, da Ordem Terceira de São Francisco, talvez tenha sido um dos mais lamentáveis enganos do regime que fez 20 mil perseguidos políticos no Brasil.
Banida para o México em troca da libertação do cônsul japonês Nobuo Okuchi, seqüestrado em 1970, irmã Maurina foi mais que o símbolo de uma época: para seus algozes, que a castigaram de maneira brutal, tornou-se uma presa rara. Para as organizações de esquerda, envolvidas no confronto armado com o regime, virou uma prenda. Era a prova mais estapafúrdia dos arbítrios da época, que não poupavam nem mesmo uma freira voluntariosa, diretora de um orfanato de crianças carentes em Ribeirão Preto, a 320 quilômetros da capital paulista. Capturada, a religiosa padeceu tão cruelmente que o então bispo daquela cidade, dom Frei Felício, chegou a excomungar dois delegados a serviço do regime. O caso provocou uma conversão profunda e definitiva: ao tomar conhecimento dos fatos, o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, então bispo-auxiliar em São Paulo, arregaçou as mangas da batina e resolveu entrar de vez na luta pelos direitos humanos no país. O que se passou então?
É de arrepiar. Presa e torturada numa delegacia, despiram-na, deram-lhe choques, penduraram-na no pau-de-arara. E o pior para uma religiosa: passou por xingamentos, injúrias, ofensas, ameaças, gritos. Madre Maurina embarcou algemada para o exílio involuntário - e era com as algemas que limpava o suor do rosto no vôo para o México, a bordo de um Caravelle fretado. Aos companheiros de viagem, reclamou do tratamento verbal recebido. "O que mais lhe doía eram as blasfêmias e os palavrões", conta Shizuo Ozawa, o Mário Japa, um dos líderes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) - organização que comandou o seqüestro do cônsul. Mário Japa foi um dos cinco presos políticos expulsos do Brasil em troca da libertação do diplomata. Hoje, a "freira subversiva" segue cuidando de seu rebanho na cidade paulista de Catanduva. Cabelos brancos, olhos azuis e um crucifixo no peito, vai levando a vidinha interiorana enquanto dribla as intempéries da saúde, já fragilizada por seus 72 anos. "Não gosto de falar sobre isso, já perdoei a todos."
O detonador da ira do regime não passou de um equívoco. No final do ano de 1969, Maurina era a madre superiora do Lar Santana, orfanato do bairro de Vila Tibério, em Ribeirão Preto. Seu delito maior, se é que se pode chamar assim, foi ter cedido uma das salas do orfanato para que um grupo de estudantes fizesse suas reuniões. Não sabia que eles pertenciam à Frente Armada de Libertação Nacional (Faln), organização de pequeno porte que se propunha combater pela força a ditadura militar. "Sua imprevidência foi abrir a sala para as reuniões. Os estudantes valeram-se de sua boa-fé, mas qualquer pessoa perceberia sua inocência. Menos os policiais", explica dom Angélico Sândalo Bernardino, bispo-auxiliar de São Paulo, na época padre em Ribeirão. Com as primeiras prisões, Maurina, por precaução, queimou o material "subversivo" que os jovens deixavam no porão do Lar: a coleção de um jornalzinho mimeografado de nome O Berro e uma lista com alguns nomes de integrantes da Faln.
Por esse "crime" pagou caro. Os policiais vieram buscá-la no orfanato. Já no cárcere, foi interrogada pelo temido delegado Sérgio Paranhos Fleury, da Operação Bandeirantes, destacada para investigar o grupo de Ribeirão. Uma equipe de 15 torturadores revezou-se nos castigos, com provocações: "Chame esse seu Deus para livrar você das nossas mãos". Numa época de silêncio imposto e vigiado, os rumores da tortura da religiosa chocaram a Igreja Católica. "Foi inacreditável. Eles fizeram isso com todo mundo, mas por que com ela?", diz dom Angélico. "A irmã não tinha participação alguma na organização", confirma Vanderley Caixe, um dos líderes da Faln. A Frente surgiu de um racha do Partido Comunista e foi um dos primeiros grupos a aderir à luta armada. Amadores, os rapazes usavam o Manual do Escoteiro nos treinamentos.
Foram injustiças demais. Uma das piores, na visão da madre, foi a informação (que até hoje circula) de que teria sido estuprada por um torturador e embarcado grávida para o México. "Essa foi uma das grandes mentiras ditas a meu respeito", afirma. É um desses casos em que o silêncio em torno da realidade ganha importância diante da História. Criou-se uma aura de suspense que nem o livro esclarece. Não que o estupro fosse prática abolida dos manuais da repressão. Outras presas políticas passaram por isso. "Eram comuns os abusos sexuais", confirma a historiadora Inês Etienne Romeu, ex-dirigente da VPR, ela mesma vítima de dois estupros nos oito anos de prisão a que foi submetida. "Colocavam-me nua, de madrugada, no cimento molhado. Fui espancada várias vezes e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos, nos seios." Em 1981, Inês fez um depoimento audacioso, publicado no jornal O Pasquim, denunciando detalhes do que passou na Casa de Petrópolis, um dos centros de tortura montados pelo regime.
Em Sombras da Repressão, Maurina conta ter sido abordada por um militar loiro, alto e jovem durante sua prisão. Seu testemunho: "Ele começou a me abraçar e dizia que estava sozinho, longe de sua mulher. Eu pedia para ele se afastar, ficar longe de mim. Pegou uma arma e queria que eu a segurasse. Dizia para eu matá-lo. Queria que minhas impressões digitais ficassem na arma. Não peguei. A imprensa publicou que eu tive um filho desse militar. Outros disseram que fiz um aborto. Li essa notícia em uma revista, no México. Isso me abalou muito, tive uma depressão. Depois aceitei". Maurina viveu 14 anos no México, cinco dos quais na zona rural, visitando doentes, trabalhando com famílias e promovendo encontros de casais. Voltou ao Brasil depois que a hipófise começou a incomodá-la. Até hoje, a congregação das franciscanas não gosta que ela fale sobre o assunto.
"Não houve estupro", garante o frade dominicano Manoel Borges da Silveira, 67 anos, irmão de Maurina. Frei Manoel credita a versão da gravidez ao fato de Maurina ser uma religiosa de vida casta e recatada. Mas não se incomodou com o fato de o livro reacender especulações a respeito. "Naquela época era proibido falar sobre tortura, e esse fantasma continuou por muito tempo. Por isso o livro é bom, para acabar com um tabu." O romance histórico Sombras da Repressão teve sua venda suspensa por conter alguns erros de identificação, entretanto revolve um baú de lembranças delicadas. Em parte, isso se deve à própria autora. Para recontar uma história complexa e turbulenta, a jornalista criou um personagem fictício que colocou mais lenha na fogueira. É Felipe Castro, um jovem mexicano, filho adotivo, que desembarca em Ribeirão Preto à procura da mãe verdadeira. Na busca angustiada, ele conhece pessoas que passaram pela prisão e foram torturadas. No desenrolar da trama, há referências ao suposto filho de Maurina. "Considero esse livro um esboço. Felipe não existe, o que há é um manto muito denso cobrindo a história de Maurina", explica Matilde Leone. Alguns parentes da madre viram com desagrado o personagem mexicano.
Maurina nasceu em uma família humilde do interior de Minas Gerais. Foi criada na comunidade de Perdizinha, município de Perdizes, entre Uberaba e Araxá, um aglomerado de 50 casas construídas ao redor de uma capela. Havia missa uma vez por mês e reza do rosário todos os domingos. Seu pai, Antonio, católico fervoroso, trabalhava como "carapina", um carpinteiro dedicado à construção de carros de boi. Ao todo, eram 11 irmãos, quatro dos quais se tornaram religiosos. Maurina descobriu sua vocação aos 7 anos de idade, ao ouvir o pai contar a história de São Francisco de Assis, um entusiasta da vida religiosa para mulheres. Aos 14 anos, convenceu os pais a levá-la para o convento, em Araxá. E entregou-se à vocação. Nos cinco meses de cárcere, continuou pregando e, em pelo menos uma oportunidade, converteu uma comunista à fé católica. "Ela até me ofereceu a primeira hóstia que recebeu na prisão", conta a enfermeira Áurea Moretti, 52 anos, uma das líderes da Faln, companheira de cela e de tortura da irmã. Mais tarde, Áurea casou-se na igreja, como queria a madre.
"Eu a vi no momento do embarque, algemada. Foi um golpe. Aquela freirinha de rosto angelical e com as mãos atadas", relembra Damaris Lucena, 71 anos, integrante da VPR. Damaris, que hoje dirige uma pequena creche no interior de São Paulo, também foi trocada pela libertação do cônsul e viajou com a madre para o México. Levava consigo três filhos pequenos. "Várias vezes fez minha filha Telma, então com 3 anos, adormecer em seus braços. Ela também me convenceu a rezar." A fé de Maurina segue inabalável. Como nos tempos em que foi presa, continua dispensando o hábito da congregação, mas jamais deixou de vestir a vocação religiosa. A capacidade de perdão também continua a mesma. Passados 28 anos, acha que sua prisão foi apenas a parte que lhe coube na História. E ponto.
A reportagem é de Andréa Barros e Laura Greenhalgh e publicada pela revista Época, 28-09-1998.
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