Dia desses cheguei em casa no final da tarde/noite, acho que era uma quinta-feira, louco de cansado; o início do governo Dilma é de muito, muito trabalho, planejamento na Secretaria Geral da Presidência da República com o ministro Gilberto Carvalho, o que é bom e necessário, louco de vontade de espichar as pernas, tomar um ‘chima’ com toda calma do mundo, olhar qualquer bobagem na televisão. Zapeando, descobri um filme Esta terra é minha Terra –This Land is my Land-, sobre a vida de Woody Guthrie.
Passa nos anos 30 do século passado, nos EUA, período da Grande Depressão, depois da quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Woody mora em Oklahoma e faz de tudo um pouco. Pinta letreiros e paredes, é músico dos bons, música ‘country’ de raiz, mas não há emprego e trabalho, não há o que fazer, não há como viver e sobreviver. Os tempos são duros, crise do capitalismo, etc.
Um dia, Woody deixa um bilhete para a mulher e inicia longa viagem, o violão debaixo do braço, para a Califórnia, terra do ouro, da riqueza, das oportunidades, terra da felicidade. Lá ele conhece Robbin, cantador ‘country que já tem programa de rádio, de quem vira parceiro, e que vive cantando em acampamentos de bóias-frias, sem-terras e sem-emprego daqueles tempos. Robbin era escorraçado dos acampamentos, por sinal muito semelhantes aos acampamentos de sem-terras brasileiros, pelos capangas dos donos das terras, às vezes apanha, porque vive pregando a união dos diaristas em sindicatos.
Os trabalhadores, apesar da opressão e da falta de trabalho, resistem a se organizar. Numa reunião de trabalhadores para discutir a criação da ‘Union’ –Sindicato-, onde ninguém escutava os discursos de ninguém, de repente Woody pega o violão e começa a cantar uma música sobre união e organização. Encantados e alegres, os presentes começam a cantar junto com Woody, num sentimento comum de que a música e a arte ultrapassaram a palavra e o discurso e tocaram no coração.
Woody começa a ficar famoso. Oferecem-lhe programas de rádio com boa remuneração, coisa que ele nunca tinha conseguido na vida, e um agente musical quer levá-lo por todos os Estados Unidos, ‘coast to coast’. Única exigência: deixar de lado as músicas de protesto, ou diminuir sua execução, e cantar baladas ‘country’, tipo música sertaneja brasileira de hoje, falando de amor, saudade e traições amorosas, em vez de músicas com letras sobre a fome dos trabalhadores, suas condições de trabalho, reivindicações e a importância de sua organização contra os patrões exploradores. Ele não aceita as propostas indecentes que o afastariam do povo e do seu sofrimento.
Corta. Março de 2011. Kenneth Maxwel escreve em sua coluna, intitulada "Decadência?”, na Folha de São Paulo: "O resultado surpreendente de um estudo de Charles Blow, colunista do New York Times, é que, em nove categorias, os EUA ocupam posição baixa em seis. Em quatro delas são o ‘pior dos piores’, e estão entre os piores em outras duas. Elas variam de comparações de disparidade de renda, onde na corrida pela última posição os EUA só ficam acima de Honk Kong e Cingapura; a insegurança alimentar (a porcentagem da população que afirma não ter dinheiro suficiente para alimentar sua família nos 12 meses anteriores); e população carcerária por 100 mil habitantes (o número norte-americano é de 743, ante 85 na Alemanha)”. Escreve Blow, citado por Maxwell: "Os EUA são ótimos de muitas maneiras, mas de acordo com diversos indicadores, nos tornamos retardatários do mundo industrializado. Não só não somos o número um –‘USA! USA’ -, como estamos entre os piores do mundo. Essa realidade, e a urgência que ela deveria instilar, é difícil demais para que muitos norte-americanos a digiram. Eles prefeririam continuar a se consolar com platitudes sobre a grandeza americana e a contemplar nosso império em erosão por entre as brumas indistintas do passado esplendor”. A propósito, diz Maxwell, o mais recente lema de Obama é ‘ganhar o futuro’.
Woody Guthrie fez versos sobre a vida do povo norte-americano nos anos 30: "Nas praças da cidade, na sombra de um campanário;/ no intervalo do escritório, eu vi o meu povo./ Tinham fome, e eu estava lá perguntando,/ Esta terra é feita para você e para mim?/ Quando andava, eu vi uma placa,/ e na placa, dizia ‘Não invadir’ (em outra versão, lê-se ‘propriedade privada’)/ Mas no outro lado, ela não dizia nada!/ Esse lado foi feito pra você e para mim”.
Woody, assediado por agentes, emissoras de rádio, todos querendo ganhar dinheiro em cima de sua música, desde que não cantasse as canções com letras de protesto ou sobre a vida do seu povo, decide viajar pelos Estados Unidos para cantar onde o quisessem ouvir: "Eu odeio uma música que faz você penar que você não é nada bom. Eu odeio uma música que faz você pensar que você é nascido para perder. Obrigado a perder. Não serve para ninguém. Não serve para nada. Porque você é muito velho ou muito novo, muito gordo ou muito magro, muito feio ou muito isso, muito aquilo. Músicas que te deixam para baixo ou ridicularizam você por conta de sua má sorte ou dificuldades. Vou lutar com essas músicas até meu último suspiro de ar e minha última gota de sangue. Vou cantar músicas que irão provar a você que esse é seu mundo e como, se isso tem afetado você bastante e batido em você uma dúzia de vezes, não importa qual cor, qual tamanho você tem, como você foi construído. VOU CANTAR AS MÚSICAS QUE FAZEM VOCÊ TER ORGULHO DE SI E DE SEU TRABALHO.”
No Brasil, há muitos cantadores, artistas populares, poetas e educadores que cantam a vida do seu povo como Woody Guthrie. E que não se vendem por meia dúzia de trocados. O nome de muitos, que descubro Brasil afora e me/nos encantam, me vem logo à cabeça. (Não cito nenhum para não fazer graves injustiças.) Os países ricos (e nós também), em meio à crise do capitalismo neoliberal selvagem, tal como em 1930, novamente precisam de quem interprete a alma do povo, de quem ouça seus gemidos e dores, de quem ajude os trabalhadores se organizarem para buscar seus direitos e igualdade, de quem proponha de novo os valores da solidariedade, do bem viver, da justiça e da dignidade, de quem grite bem alto e cante aos ouvidos de todos e todas que um outro mundo é possível urgente e necessário.
Em vinte e cinco de março de dois mil e onze.
Selvino Heck
Assessor Especial da Secretaria Geral da Presidência da República
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