segunda-feira, 14 de março de 2011

''ACHO ESTRANHO QUE RATZINGER FAÇA UMA SEPARAÇÃO TÃO RADICAL ENTRE RELIGIÃO E POLÍTICA''

"Parece-me estranho que Ratzinger faça uma separação tão radical entre religião e política, porque isso o colocaria em contradição com Bento XVI, que ostenta um cargo político dos mais altos (chefe de Estado). E Ratzinger é um pensador coerente."

A opinião é do teólogo jesuíta José Ignacio González Faus, em artigo publicado no sítio Religión Digital, 12-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Um bom amigo de Sabadell (Álvaro), grande cristão, me mandou hoje um e-mail dizendo-me que está triste porque, na residência de idosos onde vive, leu nesta manhã, na imprensa, que o Papa, em seu livro sobre Jesus, critica os teólogos da libertação, porque dizem que Cristo foi um revolucionário zelota e porque são amigos da violência, enquanto que Jesus separou definitivamente política e religião...

Álvaro foi, antigamente, um emigrante de Extremadura a Catalunha, viveu em cavernas por um tempo, foi militante da JOC [Juventude Operária Católica] e sindicalista da USO [União Sindical Operária] (proibida então), depois foi preso pela polícia franquista e conheceu a tortura e a prisão. Conhecemo-nos há mais de 40 anos. Escrevo esta resposta para ele, mas a disponibilizo aqui, porque talvez possa ajudar a outros leitores.

Será preciso esperar para conhecer o livro, mas duvido muito que Ratzinger diga essas coisas assim como a imprensa diz, porque o considero uma pessoa de inegável rigor intelectual. Neste momento, ocorrem-me quatro reflexões para tranquilizar o meu amigo.

1 – Acredito que conheço todas as cristologias escritas por teólogos sul-americanos. Nenhum deles disse o que, segundo a imprensa, o Papa lhes atribui: nem Boff, nem Sobrino, nem Juan Luis Segundo, nem o malogrado H. Echegaray em seu precioso livro (La Práctica de Jesús), nem Carlos Bravo em Jesús, Hombre en Conflicto... Nenhum, que eu saiba. A ideia de um Jesus zelota é de origem europeia (Reimarus, no século XVIII, e Brandon, no século XX), mas não latino-americana.

2 – O que os teólogos da libertação costumam dizer, sim, é que, consciente ou inconscientemente, a política é uma dimensão que está sempre presente em nossos modos de agir. Isso pode ser discutido, mas não é uma afirmação cristológica, mas sim antropológica. Os teólogos da libertação também defendem que a política foi um fator decisivo na condenação à morte de Jesus. Assim o mostra o quarto evangelho, ao qual Ratzinger dá tanta credibilidade histórica, em seu capítulo 11: as autoridades judaicas temem que, se o povo crer em Jesus, "os romanos virão e acabarão com a nossa nação". E Caifás (que era o aiatolá do momento) determina que é melhor que um morra para que todos se salvem. Também acusou-se Jesus de blasfêmia: mas a blasfêmia não exigia uma condenação política como era a crucificação, mas só o apedrejamento, como ocorreu com Estevão poucos anos depois.

3 – A resposta de Jesus quando lhe perguntam se é lícito pagar o tributo a César ("Dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César") não pretende ser um ensinamento sobre a separação entre religião e política. Pois, em si mesma, não diz nada, já que tudo o que é de César é também de Deus, e o que é de Deus, Ele deu aos homens (entre os quais também está César). A frase de Jesus, portanto, não aspira a ensinar nada, mas sim a pôr em evidência os que o tentavam. Os judeus haviam aceitado a moeda romana (algo como a "dolarização" que alguns países sul-americanos fizeram e que era muito benéfica para os ricos, mas desastrosa para os mais pobres e agricultores). Além disso, a moeda romana trazia gravada uma imagem de César, e os judeus eram absolutamente proibidos de esculpir imagens humanas. Nesse contexto, os que estavam se aproveitando do dinheiro romano vêm hipocritamente a lhe propôr uma pergunta de moral para colocar-lhe em uma enrascada. E Jesus se limita a pôr em evidência sua má-fé (chama-lhes de "hipócritas") e lhes diz uma frase quase tautológica, mas que os coloca em um aperto. Por isso as pessoas se admiram.

4 – Também me parece estranho que Ratzinger faça uma separação tão radical entre religião e política, porque isso o colocaria em contradição com Bento XVI, que ostenta um cargo político dos mais altos (chefe de Estado). E Ratzinger é um pensador coerente.

5 – O que pode ser, sim, é que Ratzinger diga que Jesus se negou radicalmente a todo uso do poder político para instaurar o que Ele dizia que havia de ser a nossa máxima preocupação: "Buscar primeiro o reinado de Deus e a Sua justiça". Nesse caso, ele tem toda a razão: Jesus se negou a ser proclamado Rei e não acreditou que o fato de ser o Enviado de Deus lhe desse esse tipo de direitos.

Se for assim, então teria coincidência com tudo o que foi dito nos três primeiros pontos. Para mim, pessoalmente, continuaria havendo algo que não entendo no quarto ponto (no caráter de chefe de Estado, do Papa): porque, em seu outro livro (Luz do Mundo), Ratzinger diz expressamente que a carta de São Bernardo ao Papa Eugênio III (chamada em latim De Consideratione), é um livro que todos os Papas deveriam ler. Pois bem, nessa carta, São Bernardo diz ao Papa que "tu não pareces sucessor de Pedro, mas sim de Constantino". Ou seja: São Bernardo (e Bento XVI) advoga por uma separação entre religião e poder político, que ainda não ocorre na Igreja de hoje.

E nada mais: gostaria que essas coisas sirvam para tranquilizar o grande amigo Álvaro.

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