quarta-feira, 18 de maio de 2011

MEMÓRIAS DO CORAÇÃO

Desde o dia 27/3, eu me permiti ser Maria. Maria aos pés do mestre JESUS que me falou intensamente. Falou através dos mistérios dolorosos e gloriosos vividos.

Falou através da presença de tantos que vieram dos quatro cantos celebrar a ressurreição do nosso amigo José Comblin.

Falou através do abraço, do aperto de mão, das lágrimas silenciosas, da solidariedade entre todos que nos sentimos irmanados na orfandade.

Falou através das mensagens e testemunhos tão diversos e genuínos retratando a grandiosidade de nosso profeta.

Falou enfim através da vida tão completa de nosso amigo que pude acompanhar por tantos anos.

O Mestre foi desvendando os fatos, como fizera pacientemente com os discípulos no caminho de Emaús, até reconhecerem o Ressuscitado! Daí vou haurindo as forças para prosseguir no caminho de Jesus.

É com o coração repleto de GRATIDÃO que faço essas linhas. Gratidão pelo nosso querido José Comblin -o padre Zé- por tudo o que ele foi e significa para nós.

Gratidão também por cada um, por todos vocês que tão carinhosamente se expressaram de muitas formas, de todos os recantos, presentes nas mais diversas fases de nossas histórias. Tantas mensagens tão belas, tão lindas, que transbordaram do coração. Raios de Luz a suavizar a noite e a apontar o rumo, como a estrela de Belém. Certamente ele quer nos ver a caminho. Por isso envia a sua luz!

Ele partiu para a sua Grande Viagem, como ele costumava dizer. Três dias antes comentava comigo: - Acho que Deus se esqueceu de mim... Pela primeira vez senti que desejava partir. Indaguei, ao que ele respondeu: não me sinto mais desse mundo. Nos últimos dias tinha pressa de fazer tudo, organizar, responder. Mas, o livro... O livro era o grande desafio. Desejava fazer o melhor. Trabalhou intensivamente na 4ª versão em janeiro. Já ia adiantado, quando o computador escondeu e não mais devolveu seus escritos. A princípio ele se conformou, disse que era para poder recomeçar melhor... Mas, um mês depois, o esforço o desafiava, dava para perceber. Sua mais bela obra ficou inacabada. Será, sim, publicada no momento oportuno.

Ele se preparou cuidadosamente para a Grande Viagem. Todos se recordam quando optou pela diocese de Barra, terra de desafios, sertão remoto e esquecido, igreja dos pobres, dos pequenos, dos sem voz, sem vez, sem nada..., mas, cheios de Deus! Ele justificava: preciso me converter, preparar-me para a grande viagem. Acolhido pelo pastor, místico e profeta, que muito admirou e amou; cada dia José se via mais feliz. "À sombra de um santo como dom Cappio, eu só posso estar muito bem!"

Nosso amigo viveu a sua Páscoa de modo sereno e rápido como pedira a Deus.

Todos queríamos tanto que ele ficasse mais um pouquinho... Só um pouquinho...

Levantou-se na manhã do dia 27, fez a barba, tomou banho, vestiu-se, tomou o remédio, colocou o relógio e, neste dia, um agasalho... Diariamente o mesmo ritual. Hospedado num apartamento na sacristia da capela do Recanto da Transfiguração, - (comunidade querida de apoio em Salvador, onde vive Gisa e uma comunidade de consagradas leigas) - abriu as duas portas chaveadas de passagem para a capela e o jardim. Logo retornou... Seria um mal estar? Quem viu, do outro lado do jardim, logo veio com um guarda-chuva, pois garoava. Chamou...; outra vez... Silêncio. Adentrou até o quarto e lá estava nosso amigo sentado na cama inerte. Seu cardiologista veio constatar: fibrilação atrial (que provocou uma embolia cerebral), morte instantânea. Além da graça de uma morte rápida, queria também morrer na ativa... Assim ficou, sentado... E queria morrer em casa... - partiu desse recanto tão acolhedor.

Não houve nem tempo, amigo, para colocar a música que pediste para esta hora definitiva: o coro final da Paixão segundo Mateus, de J. S. Bach.

O Pai amorosamente o ACOLHEU...; ouvindo os seus desejos. Era domingo, o dia do Senhor. O Senhor veio, e no jardim da vida, colheu a flor mais viçosa. Nós, tomados de surpresa... Não tivemos pressa, necessitávamos contemplar o mistério que na sua eloqüência só nos pedia silencio profundo e obediência. Na hora do crepúsculo Frei Luiz Cáppio nos convidou a celebrar a Eucaristia na intimidade do corpo presente. Ele ainda no estado natural, tão sereno, irradiava tanta paz e até mesmo um sorriso velado nos lábios. Parecia ouvir nossos testemunhos e os cantos das comunidades.

Na 2ª feira fizemos a última viagem por terra - de carro como ele tanto gostava de viajar. Saímos de Salvador rumo ao Santuário de Santa Fé, no município de Solânea, Paraíba, Era lá que desejava fecundar a terra, junto ao modelo de missionário que ele tanto difundiu, o Pe. Ibiapina. Ele dizia: não quero ficar abandonado, lá sempre tem gente visitando o padre Ibiapina, assim também aproveitarei do movimento...

Movimento foi a sua vida toda, incansável.

Chegamos na madrugada da 3ª feira: noite escura, céu estrelado. Em breve a aurora se anunciaria e o dia chegaria. Que lindo dia! Quantos reencontros! O Santuário se preparou para recebê-lo. Alimentou e hospedou a tantos peregrinos que vieram de toda parte para o último adeus. Obrigada padre José Floren, obrigada Ir. Letícia - quanta dedicação. Também seus filhos e filhas mais próximos que chegaram antes para preparar as cerimônias. Certamente ele se regozijava de ver a sua imensa família se reunindo...

Os funerais começaram com a leitura de mensagens - durante uma hora inteira... e não foi suficiente. As 15.00 a celebração eucarística, presidida pelo bispo de Guarabira, Dom Lucena, outros seis bispos, cerca de 60 padres e pastores. Quando a noite já nos envolvia, os funerais. Bem ao lado do padre mestre Ibiapina.

Sim, você já nos contemplava da morada eterna.

Veja, José, a multidão de filhos e filhas! Quantos acorreram a Santa Fé de todos os lugares, até de fora do Brasil! Bispos, sacerdotes, religiosas, mas, sobretudo o povo dos pobres, tantos missionários e missionárias, os pequeninos, os preferidos de Jesus - estes mesmos que você amou de modo tão terno. Quantos se irmanaram nessa hora de todas as partes do mundo: da América Latina amada, da sua terra de origem Bélgica, dos vizinhos países europeus, da América do norte, até de Jerusalém... Provavelmente, do Japão, das Filipinas e tantos lugares onde seus escritos também chegaram...

Você teve o dom maravilhoso de REUNIR numa grande família todos os que sonham com uma Igreja mais humana, mais presente, mais amante e fiel a Jesus, fiel ao seu Evangelho. Como você gostava de ensinar, de mostrar, de descortinar horizontes...; apontar o Caminho de Jesus. Seu olhar aguçado penetrava a realidade e nos despertava do torpor, da cegueira e da inércia. Obrigado, padre Zé!

Sofremos, sim e muito! Somos de carne e osso ainda, e a sua presença física, com suas manifestações: o sorriso, a ternura, o abraço, suas mãos tão ternas e servidoras, o olhar tão transparente e verdadeiro, a suavidade e clareza...; e, sobretudo, as suas palavras - sábias, sinceras, penetrantes, contundentes - nos faltam imensamente, amigo! Quanto privilégio tivemos! Cultivaremos sim a sua memória, não para guardar, mas para repartir.

Sua PRESENÇA perdura através dos seus gestos que marcaram tantos corações. A sua voz segue ecoando através dos seus escritos! Os seus exemplos do cotidiano são filmes permanentes na memória do coração.

Com você aprendemos que ter Fé em Jesus não é render-lhe um culto. Ter fé em Jesus é entrar no seu Caminho e perseverar! Aprendemos a lição do amor - única realidade humana que nunca desaparece! - dirigido, sobretudo aos pequeninos e esquecidos da sociedade. O dom do Espírito é o dom de AMAR!, você escreveu.

Concede-nos a fidelidade e perseverança para levar adiante o legado que você nos deixou.

Ensine-nos a ser LIVRES como você foi!

* * * * *

Voltei para a diocese de Barra - a nossa casa - que nos acolheu com tanta alegria há quase dois anos. Aqui fui chamada a trilhar o caminho de Jesus. Quem colocar a mão no arado e olhar para traz não é digno de mim.

Cheguei para a Missa de 7º dia, celebrada na Catedral. Uma Eucaristia fervorosa e participada, uma homilia tão expressiva sobre sua vida e presença, no ofertório os símbolos do seu sacerdócio e da sua missão, no final as mensagens singelas.

Pouco a pouco, vou retomando a vida como Marta. Certamente não faltarão os momentos de ser Maria. Santa Fé do padre Ibiapina será local de peregrinação. Organizar seu legado, sua memória será um dos nossos trabalhos. Dedicar-me às Escolas Missionárias, principalmente a caçula na diocese de Barra. Contribuir na animação missionária no chão Nordestino, viver entre os pobres e os pequeninos... Será a missão!

OBRIGADA minha irmã, OBRIGADA meu irmão!

Sigamos irmanados e APRENDIZES do Caminho de Jesus inspirados pelo nosso amigo para sempre José Comblin!

Barra, 05 de abril de 2011
Monica Maria Muggler
Nós o AMAMOS muito!


Nos lhe agradecemos por TUDO!


Descanse em Paz,
Você cumpriu sua Jornada!
Seguirá sendo SAL e LUZ!

...também quero pedir
que você, junto de Deus,
rogue por seus amigos da terra.
Que sejamos fiéis
ao povo de Deus e,
entre o povo de Deus.
de modo carinhoso,
como você testemunhou,
os pobres, os pequenos,
os sem voz, sem vez, sem nada.

Mas que são cheios de Deus.
E você assumiu esse compromisso
evangélico de servir os prediletos de
Jesus que são os pobres deste mundo.
Ensina-nos padre José e
ajuda-nos a fazer como você fez.


(Palavras de Frei Luiz Flávio Cáppio durante os funerais)


Monica Maria Muggler
Missionária leiga na Diocese de Barra (Paraíba)

http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=55319

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