quinta-feira, 19 de maio de 2011

IMPACTO DO CONCÍLIO VATICANO II E DA TEOLOGIA LATINO-AMERICANA NA AMÉRICA CENTRAL

“O Kairós tem duas características: surge inesperadamente, onde ninguém esperava; o kairós vem depois de um ‘tempo ruim’, um tempo negativo, um tempo de retrocesso”. A afirmação é de Pablo Richard, teólogo e biblista chileno, em artigo publicado no sítio da Adital, 17-05-2011. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Primeiras Jornadas Teológicas da América Central e do Caribe, 26 a 29 de abril de 2011.

I: Conceito bíblico de “Kairós”

Existe um conceito bíblico muito importante: “kairós”, que significa “tempo oportuno”, “tempo de graça”.

Tem duas características: surge inesperadamente, onde ninguém esperava; o kairós vem depois de um “tempo ruim”, um tempo negativo, um tempo de retrocesso.

II: O kairós, o tempo bom, o tempo de graça, foi inaugurado em 1962 pelo Concílio Vaticano II, pelas Conferências Episcopais de Medellín e Puebla, pela Teologia da Libertação, pelas Comunidades de Base e muitos outros movimentos sociais de inspiração cristã, que constituem esse tempo oportuno que Deus criou para a Igreja Universal e especialmente latino-americana e caribenha. O Papa iniciador deste tempo oportuno foi João XXIII, talvez o maior profeta que a Igreja teve no século XX.

III: O tempo ruim e negativo anterior ao kairós atual:

Entre o Concílio Vaticano II (1962-1965) e o final do Concílio de Trento (aproximadamente no ano de 1563) se passaram 400 anos. Este tempo em geral foi um tempo negativo e de retrocesso. O Concílio de Trento foi a resposta à Reforma da Igreja proposta por Lutero. Foi um concílio de contra-reforma, que reconstruiu toda a Igreja para que nunca mais houvesse uma reforma.

Um fato significativo foi a proibição de traduções da Bíblia nas línguas vernaculares. Podemos dizer que a Igreja viveu 400 anos sem Bíblia. O Vaticano II rompeu esta tradição (com a Constituição Dei Verbum) e foi o kairós do movimento bíblico em todo o Povo de Deus. Outras reformas tornaram realidade esse tempo novo: criação de um novo modelo de Igreja (Igreja luz dos Povos e Igreja que assume o gozo e a esperança dos povos). Outras reformas se deram no campo da liturgia, da missão e do ecumenismo.

III: O Kairós, esse tempo bom que Deus nos ofereceu, tem limites, não é eterno, pode se esgotar, inclusive pode provocar crises irreversíveis.

O esgotamento deste tempo bom gerou dois modelos de Igreja (não duas Igrejas, mas duas maneiras de ser Igreja).

Uma Igreja Povo de Deus, na qual esse tempo bom, esse kairós de Deus, tem a possibilidade de seguir existindo. Este é o modelo de Igreja que os pobres necessitam para sobreviver.

Uma Igreja de Cristandade, que necessita do poder e do dinheiro para sobreviver. Uma Igreja onde o Kairós de Deus tem muitas dificuldades para perdurar.

Nota indispensável: os dois modelos de Igreja que apenas descrevemos não são duas Igrejas que vivem separadas e confrontadas entre si. Os modelos se entrecruzam, há sinais da presença de Deus na Igreja da Cristandade e sinais de cristandade na Igreja dos pobres.

Um grande teólogo do Opus Dei me dizia certa vez: “Pablo, tu és o teólogo mais radical e mais ortodoxo que já conheci”. Isso ilustra o que acabo de dizer.

IV: A Igreja Povo de Deus, por sua própria identidade, é a Igreja onde esse tempo bom, esse kairós de Deus, tem a maior possibilidade de se consolidar.

Sinais da presença desse kairós, desse tempo bom de Deus, na Igreja dos pobres. Posso apenas enumerá-los:

1: A opção pelos pobres e contra a pobreza.

O termo “pobre” com toda a sua complexidade: os oprimidos, os que vivem na rua, os doentes de HIV/Aids, os desprezados por sua raça ou cor, os marginalizados por suas opções sexuais diferentes, as mulheres e maltratados, pobres que muitas vezes são “invisíveis”.

2: As Comunidades Eclesiais de Base, onde se une Oração, Palavra de Deus e Solidariedade.

3: A Leitura Popular de Bíblia, feita com liberdade, autonomia. A Leitura Orante da Bíblia, que transforma o texto em Palavra de Deus. Neste tempo de crise da Igreja, a leitura popular é o mais significativo e seguro que podemos fazer.

4: Teologia da Libertação com 40 anos ou mais de desenvolvimento.

5: Uma Igreja autóctone, onde a força da inculturação vem dos próprios indígenas, afro-americanos, e de outras tantas culturas e religiões.

6: Vida religiosa inserida em ambientes marginalizados e desprezados.

7: Os novos ministérios, onde desapareçam as divisões entre leigos e clérigos. Dessacralização e des-sacerdotalização dos novos ministérios. Assumir a atitude de Jesus frente ao Templo judaico e seus sacerdotes. Na Igreja originária não há sacerdotes, mas “presbíteros” (anciões, mestres).

A inclusão da mulher em todos os ministérios e responsabilidades da Igreja. As mulheres, mas tampouco os homens, não devem ser ordenados como “sacerdotes”. As mulheres devem ser integradas como mestras, sábias, teólogas, isto é, assumir todas as funções que tem o presbiterado.

“Nunca mais uma Igreja sem mulheres”

Novos ministérios próprios de uma Igreja Povo de Deus: Camponeses Delegados da Palavra de Deus, Catequistas, Diáconos (homens e mulheres), diáconos indígenas (atualmente proibidos em San Cristóbal de las Casas, no México), oradores (que organizam a oração da comunidade), curadores e muitos outros.

A igreja dos pobres estará no futuro quase inteiramente nas mãos dos leigos e leigas.

8: Uma Igreja que tem seus próprios centros de formação, tanto na América Latina como no Caribe. Sem formação dos ministros das comunidades a Igreja dos pobres não tem futuro.

9: Uma Igreja de profetas e mártires, tanto mulheres como homens.

10: Estratégia fundamental da Igreja Povo de Deus: evitar as contradições desnecessárias e crescer aí onde está sua força.

Uma Igreja com esperança, que sabe que depois de cada crise, é possível reconstruir o tempo bom de Deus.

V: A Igreja de Cristandade

Um modelo de Igreja onde o Kairós que Deus nos outorgou desde o começo do Concílio Vaticano II começa a se esgotar e cair em uma crise que pode ser irreversível.

A Igreja de Cristandade, que vive graças ao dinheiro e o poder, é uma Igreja que perdeu os pobres. Uma Igreja que atrai e concentra o maior número de Presbíteros a serviço dos que têm dinheiro. Algumas de suas Igrejas celebram mais de 12 missas cada fim de semana. Uma Igreja que afirma que “finalmente a Igreja os leva em conta”. Quando era o tempo bom de Deus se sentiam abandonados pela Igreja. Uma Igreja que vive do “rito”, da “Doutrina” e da “religião” de que gostam e onde se prega o que querem ouvir, uma Igreja que espiritualiza os Evangelhos para não ofender os seus fiéis.

Os Movimentos religiosos a serviço da Igreja de Cristandade: Opus Dei, Legionários de Cristo, Arautos do Evangelho, Comunidades do Sodalício. São os novos exércitos a serviço do Papa, para defender a Igreja da Teologia da Libertação.

Temos uma Igreja do medo: os leigos têm medo dos padres, os padres têm medo dos bispos, os bispos têm medo da cúria romana e a cúria tem medo da Teologia da Libertação.

A Igreja da Cristandade não é uma Igreja que vive no mundo, mas dentro do mundo da Igreja.

Para terminar:

Citação de uma conferência de nosso Mestre José Comblin, em El Salvador, na celebração dos 30 anos de martírio de Mons. Romero.

É um testemunho crítico e cheio de esperança:

“As perguntas de ontem me deram a impressão de que em muitas pessoas há um certo desconcerto em relação à situação atual da Igreja. Ou seja, uma sensação de insegurança. Como dizia Santa Teresa, por ‘não saber nada a respeito, que nada provoque temor’. Quando era jovem eu conheci algo semelhante e, talvez, pior. Era o pontificado de Pio XII. Ele havia condenado todos os teólogos importantes, havia condenado todos os movimentos sociais importantes, por exemplo, a experiência dos padres operários na França, Bélgica e outros países. Aí nós, jovens seminaristas e depois jovens sacerdotes, estávamos mais que desconcertados, perguntando-nos: mas, ainda há futuro? Eu me lembro que naquela época tinha lido uma biografia de um autor austríaco do papa Pio XII. E aí contava algumas palavras que havia escrito o Pe. Liber, jesuíta, professor de História da Igreja na Gregoriana. O Pe. Liber era confessor do Papa. Sabia tudo o que passava na cabeça de Pio XII e então dizia: ‘Hoje a situação da Igreja católica é igual a um castelo medieval, cercado de água, levantaram a ponte e jogaram as chaves na água. Já não há como sair. Ou seja, a Igreja está cortada do mundo, não tem mais nenhuma possibilidade de entrar’. Isso foi dito pelo confessor do Papa, que tinha motivos para saber essas coisas. Depois disso veio João XXIII e aí, todos os que haviam sido perseguidos, de repente são as luzes no Concílio e de repente todas as proibições são levantadas. Aí renasceu a esperança. Digo isto para que não se perturbem. Algo virá. Algo virá que não se sabe o que, mas algo sempre acontece

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