quinta-feira, 10 de março de 2011

PROFANIDADE DO MUNDO E SILÊNCIO DE DEUS

O pensamento pós-moderno, caracterizado pela "desconstrução” e relativização de todo o edifício conceitual aparentemente sólido da modernidade, questiona também toda tentativa de dizer de forma plena o Absoluto inefável que o Cristianismo e outras tradições religiosas chamamos Deus. Considera igualmente todo discurso com pretensões à universalização e à totalização como redutor e inadequado.

Não seria pertinente, no entanto, admitir como premissa iniludível que vivemos um tempo de enfraquecimento da fé em Deus e da reflexão sobre Ele. Ainda que seja certo que a época moderna proclamou a inevitabilidade do declínio das religiões, chegando até a sustentar a tese da morte de Deus, a identificação da modernidade com o humanismo ateu carrega consigo uma redução insustentável. Com efeito, o projeto da modernidade engendrou a indiferença religiosa mais do que a negação de Deus. Ao mesmo tempo, a crise deste projeto demonstrou que uma sociedade, se não encontrar seu fundamento em uma Transcendência –seja dado a ela ou não o nome de Deus- se dissolverá lenta e inexoravelmente.

A proclamação do advento da assim chamada pós-modernidade e do pretenso "retorno” do religioso, permite entrever que é bastante inadequado decretar o banimento de Deus do horizonte humano. E que, ao contrário, a busca de Deus continua a agitar o coração da humanidade, sem levar em conta o risco corrido por todos os discursos "oficiais” sobre Deus de estarem envelhecidos.

Hoje, seria possível encontrar uma concepção que migrou de um Deus pessoal em direção a um Deus mais impessoal e, portanto, mais afastado da tradição cristã. Mas não estaria aí para o homem e a mulher pós-modernos a fascinante oportunidade de descobrir aquele que desde a primeira hora da nossa era, Paulo de Tarso tentava anunciar aos atenienses, procurando o caminho para nomear o Deus desconhecido cujo templo encontrara andando pela cidade(cf. At 17)?

O grande teólogo Karl Rahner afirma que se a palavra "Deus” e mesmo sua memória fossem banidos definitivamente do pensamento e discurso humanos, isso não provaria a não existência Dele. Pelo contrário, o ser humano é que teria desaparecido e mergulhado no nada, fracassando em seu projeto e vocação. Pois Deus é constitutivo do ser humano em sua identidade em contínua auto-transcendência.

A fragmentação da pós-modernidade vai re-situar o problema de Deus a partir de um reencontro com o primado da alteridade. A partir daí emergirá um novo paradigma inter-subjetivo e relacional, que reconduzirá a linguagem humana a encontrar as palavras para dizer o Absoluto pelo qual seu coração anseia. Aí, talvez, possa voltar a ter sentido uma vida fragmentada pelo estilhaçamento de uma compreensão global totalizante e uniformizante do mundo e da história.

O judeu-cristianismo coloca como caminho possível da identidade do "eu” o rosto do outro. Amar o outro como a si mesmo é, desde o Antigo Testamento, o maior mandamento, paralelo à grandeza de amar a Deus sobre todas as coisas. No Novo Testamento, ambos são tomados, segundo Jesus, como resumo, síntese feliz da lei e dos profetas. No cristianismo, portanto, o ser humano é visto como alguém livre. Livre para amar. A liberdade não é concebida como uma heteronomia opressiva, no sentido de uma lei exterior que esmaga e destrói a subjetividade, mas é dom gratuito de Deus, que coloca e recoloca sempre de novo o homem livremente no caminho do amor, no percurso em direção ao outro.

A visão cristã tenta dar um passo adiante nesse sentido, ao dizer que a liberdade não vem puramente de fora, mas está dentro do ser humano, como inscrição ali gravada, da interpelação epifânica, manifestativa do rosto do outro –do pobre, da viúva, do órfão, do estrangeiro– que institui para ele a única lei, que é a lei do amor. O caminho para Deus hoje, portanto, passa por sua descoberta no sofrimento e na fragilidade do outro. Disso deram testemunho todos os místicos –homens ou mulheres– do último século que, situados no epicentro da injustiça, da violência e do mal, experimentaram a vida em plenitude e a transmitiram como legado a nossa geração.

Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

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