sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O PAPA E OS PRESERVATIVOS: MUDAR OU NÃO MUDAR? ARTIGO DE ANTHONY EGAN, JESUÍTA

Em uma entrevista publicada esta semana como um livro intitulado "Luz do mundo", o Papa Bento XVI faz algumas observações sobre o uso dos preservativos na prevenção da propagação do HIV, que foram amplamente divulgadas nos últimos dias. O jesuíta sul-africano Anthony Egan sugere que, embora os comentários do Papa, ao contrário do que foi noticiado, não marcam uma ruptura com a doutrina católica, há de fato uma inovação sutil por trás de suas palavras.

Anthony Egan SJ, doutor em ciências políticas, é membro do Instituto Jesuíta, em Joanesburgo, na África do Sul. Ele leciona no St. Augustine College of South Africa, em Joanesburgo, e no St. John Vianney Seminary, em Pretória.

O artigo foi publicado no sítio Thinking Faith, a revista eletrônica dos jesuítas da Inglaterra, 24-11-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O Papa mudou de ideia? Os preservativos são bons? E a "Humanae Vitae"? Essas são as perguntas que muitos têm feito desde o lançamento dos comentários do Papa Bento XVI, que foram publicados em um novo e longo livro-entrevista, "Luz do mundo". Eu gostaria de sugerir que, embora o Papa Bento XVI não tenha mudado de ideia sobre a contracepção artificial ou mesmo sobre a utilidade dos preservativos na prevenção do HIV/Aids, a nova visão é um passo à frente significativo por uma série de razões.

Permitam-me abordar esse argumento examinando três propostas.

Minha primeira proposta é que essas novas observações não mudam a "Humanae Vitae". O Papa não revogou a encíclica de Paulo VI de 1968 que proíbe o uso da contracepção artificial. Esse ensinamento ainda vigora, difícil como é para que alguns o aceitem. Com efeito, se olharmos atentamente para o problema em consideração – o da legitimidade ou não do uso de preservativos para prevenir a transmissão do HIV, dada a sua função como contraceptivo artificial –, vemos que estamos lidando com duas coisas completamente diferentes: a contracepção e a prevenção de doenças. A gravidez não é e nunca foi uma doença. Assim como nem a prevenção da concepção previne a transmissão do HIV. De fato, se olharmos para o exemplo que o Papa dá, ele está usando o caso de um prostituto (presumivelmente homossexual), do sexo masculino, em que não há de fato nenhuma possibilidade de que o ato sexual resulte em uma gravidez – apesar de o porta-voz do Papa, o Pe. Federico Lombardi, ter informado à imprensa desde logo que perguntou ao Papa se o gênero sexual do exemplo escolhido era significativo, e:

"Ele me disse 'Não' (...) O problema é este (...) Seria o primeiro passo para a responsabilidade e conhecimento dos riscos que a outra pessoa corre ao ter uma relação (...) Isso caso você seja um homem, uma mulher ou um transexual". [1]

Deve-se acrescentar também que o Papa não declarou os preservativos como a panaceia para a crise da Aids. Ele afirma claramente na entrevista que o preservativo não deve ser visto como "a" solução, ou mesmo como uma grande solução para o problema. A abstinência e a fidelidade conjugal são as soluções 100% certas para o problema, ele lembra a todos. Os preservativos não são 100% eficazes na prevenção da infecção pelo HIV e pode dar às pessoas uma falsa sensação de segurança, que poderia encorajá-las a assumir riscos desnecessários.

No entanto, minha segunda proposta é que uma "aplicação" um pouco diferente da "Humanae Vitae" pode estar em funcionamento aqui. Até recentemente, a sugestão foi oficialmente rejeitada pelo Vaticano de que o uso de preservativos para evitar a propagação do HIV era permissível sob a exceção permitida pela "Humanae Vitae", com relação ao "uso médico" da pílula (para efeitos de regulação dos ciclos menstruais).

Essa exceção pouco conhecida diz:

A Igreja, por outro lado, não considera ilícito o recurso aos meios terapêuticos, verdadeiramente necessários para curar doenças do organismo, ainda que daí venha a resultar um impedimento, mesmo previsto, à procriação, desde que tal impedimento não seja, por motivo nenhum, querido diretamente. ("Humanae Vitae", 15)

O que vemos aqui é, talvez, um reconhecimento da doutrina clássica de duplo efeito, que pode ser declarada como segue:

Uma ação deve ser boa ou pelo menos indiferente. O agente deve ter a intenção do efeito bom, mas não do efeito mau, embora ele ou ela pode prever o efeito maus. O efeito mau não pode ser um meio para o efeito bom, e o efeito bom deve compensar o efeito mau ou deve haver uma razão proporcional para permitir que o efeito mau ocorra. [2]

Aplicada à questão dos preservativos na prevenção da transmissão do HIV, podemos ver em esboço como isso pode funcionar: o "efeito mau" (contracepção) não é o meio pelo qual o "efeito bom" (prevenção da transmissão do HIV) é alcançada, mas é, pelo contrário, um efeito colateral do bem pretendido. Minha sensação é de que o Papa está, de fato, aplicando implicitamente essa cláusula da "Humanae Vitae" à situação atual, um ponto que parece ser corroborado pelo recente esclarecimento do Pe. Lombardi.

Essa é uma "inovação" bem-vinda no ensino magisterial que traz o Papa ao diálogo com muitos teólogos morais (conservadores e também liberais), que têm debatido esse caso há muitos anos. Martin Rhonheimer, dentre outros, teólogo de Roma e membro da Opus Dei, articulou muitos dos pontos que o Papa levantou em um artigo à revista The Tablet, em 2004 [3], no qual argumentava que o uso de preservativos para a prevenção do HIV, e não com a intenção de contracepção, não viola a "Humanae Vitae":

Este não é um apelo a "exceções" à norma que proíbe a contracepção. A norma sobre contracepção se aplica sem exceção. A escolha contraceptiva é intrinsecamente má. Mas, obviamente, só se aplica a atos contraceptivos, como definidos pela "Humanae Vitae", que encarnam uma escolha contraceptiva. Nem todo ato em que é utilizado um dispositivo que, de um ponto de vista puramente físico, é "contraceptivo" é, de um ponto de vista moral, um ato contraceptivo que é classificado pela norma ensinada pela "Humanae Vitae".

Ele continua:

Igualmente, um homem casado que está infectado pelo HIV e usa o preservativo para proteger a esposa da infecção não está agindo para tornar a procriação impossível, mas sim para prevenir a infecção. Se a concepção é impedida, esse será um efeito colateral "não intencional" e, portanto, não dará forma ao sentido moral do ato como um ato contraceptivo. Pode haver outras razões para alertar contra o uso d e um preservativo nesse caso, ou para aconselhar a continência total, mas elas não serão por causa do ensino da Igreja sobre a contracepção, mas sim por razões pastorais ou simplesmente prudenciais, como o risco, por exemplo, de o preservativo não funcionar.

Minha terceira proposta é que esse ensinamento reflete uma mudança no pensamento oficial católico e um reengajamento com a tradição moral católica. O que vemos com a afirmação do Papa também é uma aplicação do princípio da totalidade, quando se olha para a imagem global de um problema, a fim de situar a moralidade de um ato controverso. Permitam-me usar um exemplo:

1. Todos concordamos que a amputação de membros é ruim, uma vez que constitui a mutilação de uma pessoa.

2. Porém, pode-se amputar um membro gangrenado para evitar que a gangrena se espalhe e, portanto, para salvar todo o corpo da morte.

3. No entanto, não podemos dizer que, mesmo assim, o ato de amputação é um bem positivo. Ele é, na verdade, um mal menor.

Agora, essas tradições clássicas da aplicação daquilo que pode ser chamado de consciência contextual ou histórica para os problemas morais não parecem ter caracterizado fortemente grande parte da teologia moral magisterial oficial, particularmente no que se refere a questões de sexo. Como a transmissão do HIV é principalmente uma transmissão sexual, a ética da prevenção da transmissão do HIV tem sido, até agora, incorporada na – e muitas vezes confundida com – a ética do sexo. E a ética do sexo determinou (e possivelmente limitou) o que foi considerado pela Igreja como moralmente aceitável no que respeita à prevenção da propagação do HIV. Na declaração do Papa Bento XVI, talvez vejamos uma tentativa de abordar a crise do HIV em seu contexto mais amplo.

Curiosamente, pastores como Dom Kevin Dowling, de Rustenburg, e inúmeros teólogos morais [4] que defendem uma interpretação mais flexível do problema, com base em uma leitura mais ampla da tradição moral católica – em consonância com eminentes doutores da Igreja como Tomás de Aquino e Afonso de Ligório –, devem agora se sentir justificados em suas opiniões. Isso pode indicar uma possível glasnost entre o Vaticano e esses pastores e teólogos. Ao invés de não nos falarmos, ou mesmo falarmos uns contra os outros, pode ser que nós estamos começando a ver um novo modus operandi para aqueles que compartilham, ensinam e estudam a fé católica? Falamos uns com os outros; examinamos as ideias uns dos outros de uma forma respeitosa e amigável. Até mesmo supomos que cada um busca verdadeiramente a Verdade e o Bem.

Apesar daquilo que possa parecer para muitos "forasteiros" religiosos e liberais na Igreja como uma inovação bastante mundana e cautelosa por parte do Papa, eu sugeriria que, em minha última observação, há razões para um otimismo cauteloso pelas aplicações mais amplas do que apenas a crise do HIV.

Notas:

1. BBC News Europe, "Pope’s condom views clarified by the Vatican", 23 de novembro de 2010. http://www.bbc.co.uk/news/world-europe-11821422

2. James Childress, "Christian Ethics, Medicine and Genetics", em Robin Gill (org.), The Cambridge Companion to Christian Ethics (Cambridge University Press, 2001), p. 264.
3. Martin Rhonheimer, "The truth about condoms", The Tablet, 10 de julho de 2004.

4. Ver, por exemplo: "New Directions in Sexual Ethics: Moral Theology and the Challenge of AIDS" (Geoffrey Chapman, 1998); James F. Keenan SJ (ed.), "Catholic Ethicists on HIV/Aids Prevention" (Continuum Books, 2000).

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