quarta-feira, 28 de outubro de 2009

'DOM ROMERO E TU': CARTA DE JON SOBRINO A IGNACIO ELLACURÍA

Este ano é o 20º aniversário de martírio do jesuíta Ignácio Ellacuria um dos seis jesuítas assassinados em El Salvador, há 20 anos. Na verdade, segundo ele, esta é uma homenagem principalmente a Julia Elba e Celina, a funcionária da residência dos jesuítas e sua filha de 15 anos, que também foram assassinadas naquele 27 de outubro de 1979 e logo chegará o 30º de Dom Romero. Cabe-nos falar de vocês com frequência, com responsabilidade especial e também com algum escrúpulo. Vocês, os jesuítas, são mártires bem conhecidos, mas Julia Elba e Celina, nem tanto. Porém, elas são o símbolo de centenas de milhões de homens e mulheres que morreram e morrem inocente e indefesamente aqui, no Congo, na Palestina, no Afeganistão, sem que ninguém faça muito caso delas.

Praticamente, elas não existem, nem em vida, nem em morte, para as sociedades da abundância. E a instituição Igreja também não sabe o que fazer com tantas pessoas que morreram assassinadas. Se é difícil que canonizem um mártir da justiça como Dom Romero, muito mais difícil é que canonizem esses homens e mulheres que viveram e morreram em pobreza e opressão. E, no entanto, muitas vezes te ouvi dizer que eles são "os preferidos de Deus".

Deveria escrever-te, pois, sobre Julia Elba e Celina, mas conheço pouco delas. De Julia Elba, sei que passou trabalhando toda a sua vida nas podas, na cozinha. E tudo isso desde que tinha 10 anos. Não sei muito mais sobre ela. Sim, me perguntei "quem é mais mártir, Ellacuría ou Julia Elba", e seria terrível que os mártires jesuítas fizessem esquecer dessas duas mulheres que morreram assassinadas a 50 metros do jardim de rosas. Nesses dias, escrevi que "Ellacuría não viveu nem morreu para que o esplendor de sua figura opacasse o rosto de Julia Elba". Ellacu, este é o escrúpulo.

Mas Julia Elba e muitas mulheres salvadorenhas como ela me perdoarão, talvez até se alegrarão, pelo fato de que nesta carta eu te fale sobre o nosso Monsenhor, pois elas não têm ciúmes de uma pessoa muito querida. E eu a intitulei: "Dom Romero e tu". Minha intenção é ajudar as novas gerações, àqueles que não sobra orientação cristã e salvadorenha. Que saibam que uma vez houve um país e uma Igreja extraordinária: a de Dom Romero. E tu és um mistagogo de luxo para introduzir-nos em sua pessoa. Por isso, vou recordar como vocês dois se relacionaram.

As pessoas sabem que os dois foram eloquentes profetas e mártires. Mas gosto de lembrar outra semelhança importante sobre como começaram. Os dois receberam uma tocha cristã e salvadorenha e, sem discernimento algum, fizeram a opção fundamental de mantê-la ardendo. Monsenhor recebeu-a de Rutilio Grande na noite em que o mataram. E, morto Monsenhor, tu a retomaste. É verdade que tu já tinhas começado antes, mas após seu assassinato tua voz ficou mais poderosa e começou a soar mais como a do Monsenhor. Ouvi uma senhora dizer na UCA: "Desde que mataram o Monsenhor, ninguém aqui no país falou como o Pe. Ellacuría".

O que me interessa recordar e reforçar é que, em El Salvador, existiu uma tradição magnífica: a entrega e o amor aos pobres, o enfrentamento aos opressores, a firmeza no conflito, a esperança e a utopia que passavam de mão em mão. E, nessa tradição, resplandecia o Jesus do evangelho e o mistério de seu Deus. Não podemos dilapidar essa herança e devemos fazer com que ela chegue aos jovens.

O início de tua relação com Dom Romero não foi positiva. No começo dos anos 70, tu já eras conhecido como um perigoso jesuíta de esquerda por tua defesa da reforma agrária, o apoio à greve dos professores da Andes [Associação Nacional de Educadores Salvadorenhos] e a análise da fraude eleitoral de 1972. Mas com o teu livro "Teologia Política", de 1973, começaste a tocar temas mais explicitamente cristãos: salvação e história, o messianismo de Jesus, a missão da Igreja, violência e política... E mesmo que no país não se falasse ainda de teologia da libertação – e de como seus defensores eram perigosos –, os bispos se assustaram com o Ellacuría teólogo que emergia com força. E coube a Dom Romero escrever uma crítica de sete páginas sobre o teu livro. Fez isso em tom sério e educado, diferentemente da crítica que chegou de um teólogo de uma cúria romana, chamado Garofallo. O primeiro encontro entre vocês foi um choque.

As coisas seguiram seu curso. Tu, com ciência e profecia, e às vezes com humor e ironia. Em uma pequena revista da UCA, escreveste um breve artigo com este título: "Um bispo disfarçado de militar e um núncio disfarçado de diplomata" – os da minha geração saberão a quais hierarcas tu te referias. Não era o teu estilo, mas sim a tua convicção.

Assim chegou 1976. Dom Luis Chávez y González, benemérito e bom amigo, depois de 38 anos, deixava a responsabilidade da arquidiocese. Na ECA [revista da UCA], reunimo-nos para escrever um editorial sobre um assunto tão importante: "Quem será o novo arcebispo". Apoiamos Dom Rivera e nos distanciamos criticamente daquele que parecia ser um possível candidato: o bispo Oscar Arnulfo Romero. A eleição, certamente, deu errado para o Vaticano, e mais tarde tu escreverias que "Dom Romero não foi eleito para que fosse o que foi; foi eleito quase para o contrário".

Chegaram a conversão do Monsenhor e uma profunda mudança em tua relação com ele. Quando, em março de 1977, mataram Rutilio, tu estavas na Espanha e, de Madri, no dia 09 de abril, lhe escreveste uma carta, que chegou em minhas mãos, por casualidade, muitos anos depois. Publicamo-la em "Carta a las Iglesias", março de 2006.

"Tenho que vos expressar, em minha modesta condição de cristão e sacerdote de vossa arquidiocese, que me sinto orgulhoso de vossa atuação como pastor. Deste longínquo exílio, quero mostrar-vos minha admiração e respeito, porque vi, na ação de Vossa Eminência, o dedo de Deus. Não posso negar que vosso comportamento superou todas as minhas expectativas, e isso me produziu uma profunda alegria, que quero comunicar-vos neste sábado de gloria".

Ellacu, essa carta é um dos teus textos mais bonitos. Falas com Monsenhor com total verdade e te mostras em facetas desconhecidas para quem só te conheceu como professor e reitor. Depois do assassinato de Rutilio, lhe agradeces por "vossa valentia e prudência evangélicas diante de claras covardias e prudências mundanas", pelo acerto ao "ouvir todos, mas decidindo o que parecia ser mais arriscado a olhos prudentes". Referias-te à missa única, à supressão das atividades nos colégios católicos, a promessa do Monsenhor de não participar de nenhum ato oficial... Felicitas-lhe: "O senhor fez Igreja e fez unidade na Igreja". A maioria do clero, religiosos e religiosas se aglutinaram ao redor do Monsenhor. E tu voltas a lhe desejar no final: "Se conseguirdes manter a unidade de vosso presbitério mediante vossa máxima fidelidade ao evangelho de Jesus, tudo será possível".

Na carta, aparece a dialética evangélica e inaciana, recorrente em ti: "conseguistes não pelos caminhos da bajulação ou da dissimulação, mas sim pelo caminho do evangelho: sendo fiel a ele e sendo valente com ele". "Não poderíeis ter começado melhor a fazer Igreja". Eu também escrevi que, mesmo que tudo parecia ter começado muito mal para Monsenhor, tudo começava muito bem. E assinaste: "Este membro da arquidiocese, que agora se vê afastado contra a sua vontade".

Quando voltaste em 1978, te colocaste, com entrega e devoção, ao serviço do Monsenhor. Escreveste para a YSAX, a rádio do arcebispado, uma longa série de comentários à sua terceira carta pastoral, "A Igreja e as organizações políticas populares". Ajudaste-lhe a redigir a parte central sobre as idolatrias na quarta carta pastoral, "A Igreja na atual situação do país". Em suas últimas semanas, estiveste com ele na coletiva de imprensa depois da homilia dominical, e ele te dava a palavra quando lhe perguntavam sobre a situação política. Com ele estiveste na véspera de seu assassinato, depois daquela homilia irrepetível: "Em nome de Deus e em nome deste sofrido povo, cujos lamentos sobem até o céu, peço-lhes, rogo-lhes, ordeno-lhes, em nome de Deus: cesse a repressão!". E, no funeral, carregaste o caixão. Vemos-te com Walter Guerra, Jesús Delgado e Juan Spain.

O que fizeste pelo Monsenhor não foi simplesmente mais um de teus muitos serviços ao país. Também não o consideraste um serviço estratégico, dada a imensa influência de Monsenhor. Dom Romero chegou a ser para ti alguém muito especial, diferente de como havia sido Rahner ou Zubiri. Ele se meteu dentro de ti e tocou tuas fibras mais profundas. Eu tive essa sensação desde o começo. E ficou gravada para sempre em tua homilia na missa de funeral que tivemos na UCA. Nela, disseste: "Com Dom Romero, Deus passou por El Salvador".

Muitas vezes citei essas palavras, Ellacu. São muito tuas, pela precisão da linguagem e pelo peso do conceito. Conhecendo-te, estavas dizendo a verdade. E uma verdade teologal: neste El Salvador, massacrado e esperançado, teimoso e valente, cruel e generoso, sentiu-se a passagem do mistério. A passagem de Deus. Por isso, Dom Romero se converteu para ti em referência de Deus e em princípio e fundamento de tua teologia. Vou recordar disso brevemente.

Comecemos com a eclesiologia. O "povo de Deus" não era um tema qualquer e menos ainda quando o Vaticano II já estava em declive, e a hierarcologia voltava a ressurgir. Sobre ele, escreveste um artigo sistemático em 1983, mas antes, em 1981, tinhas escrito: "El verdadero pueblo de Dios, según Monseñor Romero". Não tentavas analisar as ideias de algum teólogo importante, mas sim ir ao fundo do problema a partir da fonte que tu tinhas mais à mão e que te parecia a mais frutífera.

Mencionaste quatro características do verdadeiro povo de Deus:
1. A opção preferencial pelos pobres;
2. A encarnação histórica das lutas do povo pela justiça e pela libertação;
3. A introdução do fermento cristão nas lutas pela justiça;
4. A perseguição por causa do reino de Deus na luta pela justiça.
5. Nem toda a novidade provinha do Monsenhor, mas a mais nova, por assim dizer, as três últimas características, provinham dele. Pelo menos, Dom Romero te fez aprofundar nelas.

Monsenhor te pôs na pista da "Igreja dos pobres", que nem sequer no Concílio teve êxito, apesar dos desejos de João XXIII, do cardeal Lercaro e de alguns poucos bispos. E certamente te inspirou a falar do martírio, realidade fundante para a Igreja, como a cruz de Jesus. Várias vezes citaste umas palavras escandalosas de Dom Romero: "Alegro-me, irmãos, que a Igreja seja perseguida. É a verdadeira Igreja de Cristo. Seria muito triste se, em um país onde está se assassinando tão horrorosamente, não houvesse sacerdotes assassinados. São o sinal de uma Igreja encarnada". Melhor e mais profundamente do que com muitos conceitos, Monsenhor define a Igreja a partir de duas relações essenciais: com o destino de Cristo e com o destino do povo. Alguém, com boa intenção, questionou uma vez o fato de que Dom Romero corresse tantos riscos, até de sua vida. Mas tu lhe respondeste: "Isso é o que ele tem que fazer". E isso é o que tu também fizeste com a tua vida. A eclesiologia não era um conjunto de conceitos tomados da realidade com alfinetes, mas sim surgidos dela.

Em cristologia, coincidiste com Monsenhor em muitas coisas. Só vou recordar uma, para mim a mais decisiva hoje, certamente no terceiro mundo, mas também no primeiro: ver Cristo no povo crucificado, considerar este como a continuação do servo de Javé. São hoje as centenas e milhares de milhões de pobres, famintos, oprimidos, mortos violentamente, massacrados, inocentes e indefesos, desconhecidos em vida e em morte. Com eles, comecei esta carta ao recordar de Julia Elba e Celina.

Em 1978, em preparação para Puebla, escreveste "El pueblo crucificado. Ensayo de soteriología histórica", em que analisas a realidade dos pobres e vítimas como o servo sofredor de Javé. Em 1981, em teu segundo exílio de Madri, escreveste "El pueblo crucificado como 'el' signo de los tiempos". No primeiro texto, reforças seu caráter salvífico. No segundo, seu caráter de revelação.

Dom Romero disse em 1977, em Aguilares, aos agricultores perseguidos e assassinados: "Vocês são o divino Transpassado". E, em uma homilia de 1978, mostrou sua alegria porque os estudiosos do Antigo Testamento não sabiam dizer se o servo, do qual Isaías fala, é "todo um povo" ou é "Cristo que vem libertá-los".

Não sei dizer "quem copiou quem" ou se aconteceu como com Leibnitz e Newton, que descobriram os fundamentos do cálculo infinitesimal independentemente um do outro. O que, sim, me parece certo é que vocês tiveram a mesma assombrosa intuição de equipar a humanidade sofredora com o crucificado e o servo de Javé. E, pelo que eu sei, só vocês dois. Isso não aparece em encíclicas, nem em concílios. Normalmente, também não nas teologias. E depois que vocês morreram, parece que não há vigor nem rigor para falar assim de um mundo que hoje está evidentemente crucificado.

E uma coisa mais. Em teu segundo exílio, escreveste outro breve texto ao qual deste muita importância: "Por qué muere Jesús y por qué lo matan". O título é mais do que uma demonstração de gênio. Trata-se de esclarecer o sentido transcendente dessa morte e de suas causas históricas. Em teologia, podem-se encontrar reflexões afins, mas não assim, certamente não com essa radicalidade, em textos oficiais da Igreja. Para o primeiro, é preciso ter presente, antes de tudo, o desígnio de Deus. Para o segundo, é preciso ter em conta a historicidade radical da vida de Jesus: defensor daqueles a quem os poderosos ofendem. Por essa razão, Jesus denunciou o poder, entrou em conflito com ele, perdeu e foi crucificado. Isso, tão evidente, costuma ser oficialmente silenciado – inclusive em Aparecida, um bom documento por causa de outros capítulos.

Dom Romero não silenciou isso. Na missa fúnebre de um dos sacerdotes assassinados, ele disse peremptoriamente: "Mata-se quem incomoda". E os que incomodavam não eram demônios ou poderes transcendentes, mas sim oligarcas, militares, órgãos de segurança, esquadrões da morte. Assim se entende o "por que mataram Jesus", como tu perguntavas.

Termino com a teologia, com Deus e com tua fé. Na primeira carta, te escrevi que a tua fé em Deus não pôde ser ingênua. Em 1969, falaste em Madri sobre as dúvidas de fé que Rahner levava com elegância – e entendi que dizias algo parecido sobre ti mesmo. Acredito que lutaste com Deus como Jacó, naqueles anos duros para a fé. E, aos teus 47 anos, Dom Romero "apareceu" a ti – e uso o termo "aparecer", opthe, conscientemente, para expressar o que houve nisso de inesperado, desorientador, questionador e bem-aventurado. Disso, só se pode falar com temor e terror, mas penso que, em contato com Monsenhor, tiveste uma experiência nova da realidade última, de Deus. E acredito que isso se notou em teu falar sobre Deus.

Escrevi que, para Jesus, Deus é "Pai" em quem se pode descansar, e que o Pai continua sendo "Deus", que não deixa descansar. Em Dom Romero, em sua compaixão para com os sofredores, sua denúncia para defendê-los, o amor sem arranjos, viste o Deus que é "Pai" dos pobres. Em sua conversão, em seu adentrar-se no desconhecido e no não controlável, em seu caminhar sem apoios institucionais eclesiásticos, em seu manter-se firme, fosse aonde o caminho fosse, viste o Pai que continua sendo "Deus". E talvez no Monsenhor também viste que, apesar de tudo, o compromisso é mais real do que o niilismo; o gozo, mais real do que a tristeza; a esperança, mais real do que o absurdo. Assim interpreto suas simples palavras: "Com esse povo, não custa ser um bom pastor". Nelas, surge a utopia.

Termino. Não era a primeira vez que te encontravas com alguém que ia influenciar importantemente em tua vida, como bem analisa Rodolfo Cardenal. No entanto, encontrar-te com Dom Romero significou algo diferente. E essa diferença radica no fato de que te encontraste com a profecia, com a entrega, a bondade do Monsenhor, mas sobretudo com a sua fé, o que configura toda a pessoa. Por isso, nunca te consideraste "colega" do Monsenhor. Nunca ouvi de ti, sendo tu de estilo crítico, uma crítica ao Monsenhor. E em teu nome e no da UCA, disseste que "Dom Romero já se havia adiantado a nós". E insististe: "Não há dúvida sobre quem era o mestre e quem era o auxiliar, quem era o pastor que marca as diretrizes e quem era o executor, quem era o profeta que desentranhava o mistério e quem era o seguidor, quem era o animador e quem era o animado, quem era a voz e quem era o eco". Dizias isso com total sinceridade.

"Dom Romero, um enviado de Deus para salvar o seu povo", escreveste. E o Monsenhor te falou sobre o que há, em Deus, de "mais aqui". Mas também te falou do que há, em Deus, de inefável, de mistério bem-aventurado, do que há, em Deus, de "mais além". "Nem o homem nem a história se bastam. Por isso, [o Monsenhor] não deixava de chamar à transparência. Em quase todas as suas homilias, saía este tema: a palavra de Deus, a ação de Deus rompendo os limites do humano". Dom Romero veio ser como o rosto de Deus em nosso mundo.

Ellacu, termino esta carta com as palavras com as quais terminaste teu último escrito de teologia. São para aqueles que não te conheceram, para todos os que te conheceram e especialmente para que ajudem que a Igreja retome o seu rumo.

"A negação profética de uma Igreja como o velho céu de uma civilização da riqueza e do império e a afirmação utópica de uma Igreja como o novo céu de uma civilização da pobreza é um clamor irrecusável dos sinais dos tempos e da dinâmica soteriológica da fé cristã historizada em homens novos, que continuam anunciando firmemente, mesmo que sempre às escuras, um futuro sempre maior, porque, além dos sucessivos futuros históricos, se vislumbra o Deus salvador, o Deus libertador".

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