quarta-feira, 21 de outubro de 2009

CARITAS IN VERITATE: UMA BÚSSOLA PARA O SÉCULO XXI

Até agora as intervenções mais importantes da Igreja em matéria social tinham sido publicadas por ocasião do aniversário da Rerum novarum de Leão XIII (1891). Assim fizeram Pio XI com a Quadragesimo anno (1931), Pio XII com o Discurso de Pentecostes (1941), João XXIII com a Mater et magistra, Paulo VI com a carta apostólica Octogesima adveniens (1971) e João Paulo II com as duas encíclicas Laborem exercens (1981) e Centesimus annus (1991). No entanto, também houve algumas exceções: a Pacem in terris (1963) de João XXIII, a Popularum progressio (1957) de Paulo VI e a Sollicitudo rei socialis (1987) que o papa Wojtyla escreveu para comemorar o vigésimo aniversário.

Digite aqui o resto do post Agora, seguindo o exemplo de seu predecessor, Bento XVI publicou a Cáritas in veritate para comemorar o quadragésimo aniversário da Populorum progressio: “pretendo prestar homenagem e tributar honra à memória do grande Pontífice Paulo VI, retomando os seus ensinamentos sobre o desenvolvimento humano integral e colocando-me no percurso por ele traçado, para atualizá-lo na hora presente (n. 8; os números entre parênteses se referem aos parágrafos da Caritas in veritate). No entanto, o papa Ratzinger não se limita a comemorar, mas realmente imprime um novo curso ao ensinamento social da Igreja. De fato, sem nada tirar da importância da Rerum novarum, Bento XVI sustenta que os ensinamentos da Populorum progressio estão mais próximos dos problemas de hoje: “expresso minha convicção que a Populorum progressio merece ser considerada como “a Rerum novarum da época contemporânea”, que ilumina o caminho da humanidade em via de unificação” (idem).

A análise é do padre jesuíta Bartolomeo Sorge, diretor da revista italiana Aggiornamenti Sociali, no editorial da edição de setembro-outubro de 2009. A tradução é de Benno Dischinger.

A encíclica de Bento XVI é complexa e articulada. No espaço de um editorial mais não podemos fazer senão oferecer um breve guia à leitura da mesma.

O texto se desenvolve segundo o método “dedutivo”, típico das primeiras encíclicas sociais: ou seja, partir dos princípios, dos quais tirar progressivamente as conclusões. Todavia, para compreender melhor a encíclica e apreciá-la mais, convém lê-la seguido o método “indutivo” – “ver, julgar, agir” – inaugurado por João XXIII na Mater et magistra: “Revelação das situações; avaliação das mesmas na luz daqueles princípios [evangélicos] e daquelas diretrizes [do magistério]; busca e determinação daquilo que se pode e se deve fazer” n. 217). Este método foi seguido pelo Concílio Vaticano II na Gaudium et spes e, em certo sentido, foi codificado por Paulo VI no n. 4 da Octogesima adveniens.

Portanto: 1) iniciaremos pelo capítulo VI, onde se explica porque a velha “questão social” se tornou hoje uma “questão antropológica”; 2) leremos depois os capítulos I e II, onde Bento XVI mostra porque a Populorum progressio de Paulo VI ainda é válida e a atualiza; 3) será depois a vez da Introdução e da Conclusão, que contêm a verdadeira mensagem da encíclica e oferecem sua chave de leitura; 4) enfim, será mais fácil entender as orientações da Igreja sobre os novos problemas de nossa época, contidos nos capítulos III, IV e V.

1. A nova “questão social” (capítulo VI)
A “questão social”, nascida no século dezenove como “questão operária”, se transformou nas primeiras décadas do século vinte, após a Revolução de outubro, a partir de um confronto ideológico entre diversos modelos de Estado: democracia liberal de uma parte e socialismo real da outra. Na segunda metade do século vinte ela mudou ulteriormente, assumindo as dimensões planetárias do equilíbrio entre o Norte rico e o Sul pobre do mundo. Hoje, enfim, após o desmentido histórico das ideologias, a queda do Muro de Berlim e após a revolução tecnológica, a “questão social” se transformou em “questão antropológica”. O desafio é o de um novo modo de conceber a vida humana, a qual – através do uso das biotecnologias de que o homem dispõe – pode ser manipulada de mil modos: da fecundação in vitro à pesquisa sobre os embriões, à clonagem e à hibridação humana. Assim, em lugar das ideologias políticas dos séculos dezenove e vinte, adquiriu força a nova ideologia tecnocrática. O homem tecnológico ficou embriagado, “convencido de ser o único autor de si mesmo, de sua vida e da sociedade [...]. A convicção de ser autossuficiente e de conseguir eliminar o mal presente na história somente com a própria ação induziu o homem a fazer coincidir a felicidade e a salvação com formas imanentes de bem-estar material e de ação social” (n. 34). Retorna a tentação de sempre: que necessidade existe de Deus, se o homem basta a si mesmo e pode libertar-se com as próprias mãos? Não é assim – responde a encíclica -: “o verdadeiro desenvolvimento não consiste primariamente no fazer. A chave do desenvolvimento é uma inteligência em condições de pensar a técnica e de colher o sentido plenamente humano do fazer do homem, no horizonte de sentido da pessoa, tomada na globalidade de seu ser” (n. 70). Bento XVI conclui: “Sem Deus o homem não sabe aonde ir e não consegue sequer compreender quem ele seja” (n. 78).

Há mais de quarenta anos, Paulo VI já lançara esta mesma admoestação com a encíclica Populorum progressio. O mundo certamente mudou desde então. Nos dias do papa Montini o processo de socialização estava pouco mais do que em seus inícios, enquanto hoje, após o desmoronamento dos sistemas econômicos e políticos dos países comunistas do Leste e após o fim dos “blocos contrapostos”, o fenômeno da globalização sofreu forte aceleração e impõe um re-projeto total do caminho de desenvolvimento mundial. Por isso Bento XVI, convencido da validade dos ensinamentos da Populorum progressio, pretende relê-los à luz dos novos desafios da questão antropológica.

2. A atualização da Populorum progressio (capítulos I e II)
A Populorum progressio falava de “desenvolvimento dos povos”. Hoje Bento XVI prefere falar de “desenvolvimento humano integral” e se propõe atualizar as perspectivas de Paulo VI.

a) A primeira atualização é a do n. 42 da Populorum progressio: “Não existe, pois, verdadeiro humanismo se não aberto ao Absoluto, no reconhecimento de uma vocação que oferece a verdadeira idéia da vida humana”. Bento XVI a torna sua e a comenta: “Paulo VI quis dizer-nos, antes de tudo, que o progresso é, em sua origem e em sua essência, uma vocação: “No desígnio de Deus todo homem é chamado a um desenvolvimento, porque toda vida é vocação”” (n. 16). É sobre este pressuposto que o Papa constroi a Caritas in veritate.

Precisamente porque o desenvolvimento é resposta do homem à sua vocação transcendente – explica -, é necessário que o progresso seja conforme à dignidade do homem: “A vocação é um apelo que requer uma resposta livre e responsável. O desenvolvimento humano integral supõe a liberdade responsável da pessoa e dos povos: nenhuma estrutura pode garantir tal desenvolvimento fora e acima da responsabilidade humana” (n. 17). Não existe desenvolvimento integral sem o reconhecimento da dignidade da pessoa humana, de sua liberdade e responsabilidade: “Somente se livre, o desenvolvimento pode ser integralmente humano; somente num regime de liberdade responsável ele pode crescer de maneira adequada” (idem).

Se, portanto, o verdadeiro progresso consiste na realização livre e responsável da vocação que o homem recebeu, segue que o “desenvolvimento humano integral” não pode não fazer referência Àquele que chama, ou seja, só pode ser transcendente. É esta a razão pela qual Deus e a religião não podem ser excluídos do horizonte humano.

b) O segundo princípio fundamental de Paulo VI é que o desenvolvimento, para ser verdadeiramente humano, necessita de fraternidade. “O mundo está doente – lê-se no n. 66 da Populorum progressio -. Seu mal reside menos na dilapidação dos recursos ou em seu açambarcamento da parte de alguns, do que na falta de fraternidade entre os homens e entre os povos”. Bento XVI assume também esta segunda perspectiva e a atualiza. As graves situações denunciadas por Paulo VI – comenta o papa Ratzinger – ainda persistem, se não até mesmo agravadas, no mundo globalizado; basta pensa, por exemplo, na atividade financeira mal utilizada, de modo prevalentemente especulativo, nos fluxos migratórios abandonados dramaticamente a si mesmos, no desfrutamento desregulado dos recursos da Terra, na corrupção e na ilegalidade (cf. n. 21). Esta é a prova – afirma – que sem “caridade na verdade” não se dá fraternidade, nem verdadeiro desenvolvimento humano e integral; é a demonstração que as estruturas econômicas e as instituições (das quais ninguém nega a importância) por si sós não bastam, se falta a atenção aos componentes humanos e humanizantes do desenvolvimento.

Aqui está precisamente o limite da ideologia tecnocrática hoje tão desenfreada. De fato – continua Bento XVI -, os homens, sozinhos, jamais poderão realizar a fraternidade. “A sociedade sempre mais globalizada nos torna próximos, mas não nos torna irmãos. A razão, por si só, está em condições de captar a igualdade entre os homens e de estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade”; o motivo é que não se pode prescindir do fato de que ela – conclui o Papa – “tem sua origem numa vocação transcendente de Deus Pai, que nos amou primeiro, ensinando-nos por meio do Filho o que seja a caridade fraterna” (n. 19).

c) Enfim, a Populorum progressio (cf., por exemplo, o n. 85) insiste que as reformas são enfrentadas numa perspectiva interdisciplinar, conectando os vários aspectos do desenvolvimento numa visão de conjunto. É quanto se propõe fazer a Caritas in veritate: “As avaliações morais e a pesquisa científica devem crescer juntas [...] e a caridade deve animá-las num todo harmônico interdisciplinar, feito de unidade e de distinção. A doutrina social da Igreja, que tem “uma importante dimensão interdisciplinar”, pode desenvolver, nesta perspectiva, uma função de extraordinária eficácia” (n. 31). De fato, muitos problemas colocados pela “questão antropológica” estão coligados entre si; os direitos individuais não podem ser desvinculados de uma visão complexiva de direitos e deveres, caso contrário a reivindicação dos direitos se torna ocasião para manter os privilégios de poucos: “os direitos pressupõem deveres, sem os quais se transformam em arbítrio” (n. 43). Bento XVI insiste na necessidade de se ter sempre presente a estreita conexão entre os vários aspectos e os diversos problemas do desenvolvimento humano integral, como no caso das problemáticas conexas com o crescimento demográfico: “Trata-se de um aspecto muito importante do verdadeiro desenvolvimento – revela o Papa, - porque concerne aos valores irrenunciáveis da vida e da família. Considerar o aumenta da população como causa primária do subdesenvolvimento é incorreto, também do ponto de vista econômico” (n. 44).

3. A chave de leitura da encíclica (Introdução e Conclusão)
A esta altura, é necessário interpretar os “sinais dos tempos” na luz da revelação cristã e do magistério da Igreja. Que leitura faz disso a encíclica? O Papa se move a partir da verdade incontroversa que a vida é um dom. Ninguém pode dar-se a vida por si só. Toda pessoa é essencialmente uma “vocação”, um “chamado à vida” (um projeto de Deus) a ser acolhido com gratidão e a ser realizado livre e responsavelmente: “Cada um encontra o seu bem aderindo ao projeto que Deus tem sobre ele, para realizá-lo em plenitude: em tal projeto ele encontra de fato sua verdade e é aderindo a tal verdade que ele se torna livre (cf. João 8, 22)” (n. 1). Eis porque não se pode expulsar Deus da consciência humana. O homem é feito para a verdade e para o amor, e Deus permanece como a única resposta possível, não só às exigências da inteligência (verdade), mas também aos impulsos do coração (amor).

Por conseguinte, a “caridade na verdade” não é somente a essência do anúncio cristão, mas é também o cimento necessário para realizar um desenvolvimento humano integral. Quando se quer que as relações humanas sejam sólidas – não só as relações pessoais “privadas” das relações de amizade, familiares ou grupais, mas também as “públicas” das relações sociais, econômicas e políticas -, elas deverão estar fundadas sobre uma “verdadeira caridade”. De fato, “sem verdade, a caridade descamba no sentimentalismo” e o amor “é presa das emoções e das opiniões contingentes dos sujeitos, uma palavra abusada e distorcida, até o ponto de significar o contrário” (n. 3); ao invés, “a verdade, fazendo os homens sair das opiniões e das sensações subjetivas, lhes permite dirigir-se além das determinações culturais e históricas e encontrar-se na apreciação do valor e da substância das coisas” (n. 4). Somente a caridade na verdade torna possível o diálogo, a comunicação e a comunhão. Em conclusão, viver a caridade na verdade é o único fundamento sobre o qual é possível construir uma “boa sociedade” e realizar um desenvolvimento integral da humanidade.

Bento XVI insiste muito na necessidade da religião para o progresso da humanidade, conceito sobre o qual concordam hoje sempre mais os expoentes da assim dita “cultura laica”. Como fazer? A resposta está, uma vez mais, na “caridade na verdade”, ou seja, no diálogo fecundo e na profícua colaboração entre a razão e a fé religiosa: “A razão sempre necessita ser purificada pela fé, e isto vale também para a razão política, que não deve crer-se onipotente. Por sua vez, a religião sempre necessita ser purificada pela razão para mostrar sua autêntica fisionomia humana. A ruptura deste diálogo comporta um custo muito oneroso para o desenvolvimento da humanidade” (n. 56).

Precisamente para reivindicar este “estatuto de cidadania da religião cristã” nasceu a doutrina social da Igreja, fundada no direito natural e na revelação: “Tal doutrina é serviço da caridade, mas na verdade. [...] É, ao mesmo tempo, verdade da fé e da razão, na distinção e simultaneamente na sinergia dos dois âmbitos cognitivos” (n. 5). O Papa formula, por conseguinte, uma nova definição de doutrina social da Igreja: “Esta – diz – é “caritas in veritate in re sociali”: anúncio da verdade no amor de Cristo na sociedade” (ibidem). De tal modo, o Papa quer sublinhar que a doutrina social da Igreja nasce, não do exterior da “questão social”, mas do interior da resposta de verdade e de amor que o cristianismo oferece às expectativas da sociedade humana. É verdade, “a Igreja não tem soluções técnicas a oferecer e não pretende “minimamente intrometer-se na política dos Estados”. Tem, no entanto, uma missão de verdade a cumprir, em qualquer tempo e acontecimento, para uma sociedade na medida do homem, de sua dignidade e de sua vocação” (n. 9). Assim, a contribuição da Igreja ao desenvolvimento humano integral consiste na promoção de um humanismo transcendente, que evite “uma visão empiricista e cética da vida, incapaz de elevar-se acima da práxis” (ibid.).

4. A Igreja diante dos maiores problemas de hoje (capítulos III, IV e V)
Na luz destas premissas, compreendem-se as tomadas de posição da Igreja ante os desafios da “questão antropológica”. É certo – especifica a encíclica – “as grandes novidades que o quadro do desenvolvimento dos povos apresenta hoje levantam, em muitos casos, a exigência de novas soluções. Elas são procuradas conjuntamente no respeito das leis próprias de cada realidade e na luz de uma visão integral do homem, que respeitem os vários aspectos da pessoa humana, contemplada com o olhar purificado da caridade” (n. 32). É quanto faz a Caritas in veritate, enfrentando os novos desafios numa ótica personalista e comunitária.

A esta altura, a encíclica introduz o conceito-chave – o mais novo – sobre o qual apóia todo o documento, quando afirma: “A caridade na verdade coloca o homem diante da estupefaciente experiência do dom. A gratuidade está presente em sua vida de múltiplas formas, com frequência não reconhecidas por causa de uma visão apenas produtivista e utilitarista da existência. O ser humano é feito para o dom que exprime e atua a dimensão de transcendência” (n. 34). A verdade é um dom maior do que nós, ela nos precede como o dom da caridade e “não é produzida por nós, mas sempre encontrada, ou melhor, recebida” (ibid.). Isto obriga a aprofundar as categorias da “revelação” e leva-nos a descobrir que “a criatura humana, enquanto de natureza espiritual, se realiza nas relações interpessoais. Quanto mais as vive de modo autêntico, mais amadurece a própria identidade pessoal. Não é isolando-se que o homem valoriza a si mesmo, mas pondo-se em relação com os outros e com Deus. [...] Isso vale também para os povos” (n. 53). Está nestas considerações a razão das orientações da encíclica em temas de finanças éticas (n. 45); de tutela do ambiente (n. 48); de uso responsável dos recursos energéticos (n. 49); de liberdade religiosa (n. 55); de colaboração fraterna entre crentes e não crentes (n. 56); sobre o papel da cooperação internacional (n. 58); sobre o turismo internacional como fator de crescimento (n. 61); sobre o fenômeno das migrações (n. 62); sobre as novas tarefas das organizações sindicais dos trabalhadores (n. 64); sobre a reforma das Nações Unidas e sobre a necessidade de uma verdadeira autoridade política mundial (n. 67). A amplitude dos horizontes e dos problemas que o papa Ratzinger enfrenta em sua encíclica fazem da Caritas in veritate um verdadeiro e próprio “prontuário social cristão para o século XXI”.

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