sexta-feira, 28 de agosto de 2009

''UMA FÉ SEM JUSTIÇA NÃO TEM NENHUM SENTIDO'', AFIRMA JESUÍTA

Manuel Plaza irradia essa paz de boa pessoa, um homem afável e alto, cabelo grisalho e de sorriso luminoso. Seu discurso suave e claro remete à essência daquilo que Cristo proclamou: justiça, dignidade, solidariedade, diálogo, amor são termos que esse jesuíta de Burgos, na Espanha, nascido em 1935, sempre repete.

Companheiro de Amando López, conterrâneo assassinado junto com [Ignacio] Ellacuría em El Salvador há 20 anos, está organizando a homenagem que, de Burgos, será tributada a esses mártires em novembro e que, para ela, abre todas as portas a todos os burgaleses. "É importante para criar solidariedade, que é algo que se refere não só aos jesuítas, mas a todos os que trabalham na cooperação internacional, porque é ajudar a levantar os povos", afirma o diretor do Centro Ignacio Ellacuría e do Comitê Óscar Romero.

Digite aqui o resto do post Eis a entrevista.

Há alguns meses, o senhor visitou El Salvador. O país mudou muito nos 20 anos que transcorreram desde o massacre de seus companheiros?
Acredito que houve mudanças importantes. Em nível econômico, o El Salvador de hoje nem se parece ao de 20 anos atrás: construiu-se muito, fez-se estradas, grandes supermercados... É verdade que continuam havendo bolsões de pobreza, tanto ou mais do que antes. Em nível político, a mudança com a nomeação de [Mauricio] Funes [da Frente Farabundo Martí de Libertação, ganhou as eleições em março dando fim a duas décadas de governos de direita] é um passo esperançoso para El Salvador e para toda América Central. É um homem que, no dia de sua nomeação, recordou Romero publicamente, assim como os pobres e as vítimas, algo que se vê muito pouco na política, e que vai tentar governar para todos. É uma mudança radical.

E na Igreja salvadorenha?
Também há uma mudança substancial com a nomeação do novo arcebispo de San Salvador, Dom José Luis Escobar, que na sua nomeação também voltou a fazer referência a Romero, às vítimas e ao povo, uma linguagem do Evangelho que nem sempre aparece.

Uma linguagem das origens da Teologia da Libertação...
Mais do que da Teologia da Libertação, é uma linguagem do Evangelho, de Jesus de Nazaré. E isso, que deveria ser o normal, não é na Igreja.

Ainda são palpáveis as marcas desses mártires?
Sim. Queiramos ou não, os assassinos, que ainda vivem e ainda se permitem dizer que não foram eles e que não têm que pedir perdão, em um exemplo de falta de ética, não são ninguém. No entanto, as vítimas daquele massacre são uma referência para o povo, para modelos de universidade cristã.

O que uma universidade cristã deve ser?
Deve formar cabeças, formas líderes que denunciem a injustiça e apostem pela verdade e pela justiça.

O que Ellacuría, Amando López e os outros representam para a Companhia de Jesus?
Algo muito importante. Quando diziam a Arrupe [jesuíta basco que foi Padre Geral da Companhia] que a Companhia estava mal, ele respondia assim: como vai estar mal se, nestes anos, mataram uns 20 jesuítas?

Que jovens a UCA [Universidade Centro-Americana "José Simeón Cañas"] está formando?
Os alunos da UCA são de classe média acomodada. É uma universidade privada e, apesar das ajudas estatais, é paga. Ellacuría insistia que uma universidade é cristã e católica quando tem qualidade de vida e de ensino. É verdade que a UCA de hoje não é a mesma que a de 20 anos trás (os assassinos sabiam bem a quem matavam), mas indubitavelmente é uma referência nacional e com peso em nível de política internacional e de direitos humanos. A opinião da UCA durante as últimas eleições foi muito importante.

Ela é uma espécie de luz, um farol de consciência e de pensamento na América Central?
Eu diria que é uma luz e uma esperança, um pensamento libertador mesmo que deixe algumas pessoas nervosas. E, principalmente, e isto é algo muito importante, porque os excluídos não estão longe das aulas, mas sim presentes na análise da realidade nacional.

Um mês antes do massacre, o senhor esteve em Burgos com Ellacuría. Como o senhor recorda esse encontro?
Iam conceder-lhe o Prêmio da Fundação Comín em Barcelona e, dias antes, passou por aqui para estar conosco. Eu lhe perguntei se ele tinha medo de que o matassem. E ele me respondeu que não. Temia que pudessem sequestrá-lo e torturá-lo, mas não temia a morte. Ellacuría era um utópico. Recordo que ele estava dando a conferência e falava a partir de outra realidade, de outro lugar diferente do nosso. Pensei claramente que era uma pessoa que havia apostado por entregar a vida. Porque o risco era enorme. Ele tivera que sair várias vezes de El Salvador porque iam atrás dele.

E como era Amando?
Era o homem bom, o homem cordial, o homem de conselho. Tinha o dom das pessoas. Quando você pergunta a quem o conheceu, riem-se, porque ele era a bondade que acolhia. Ele transmitiu mais com essa bondade que acolhia do que com todos os discursos e homilias. O bonito desses jesuítas é que não perderam nunca o contato com o povo apesar das aulas.

Lembramos deles misturando-se com as pessoas nos bairros e povoados mais marginais.
É que, de segunda a sexta-feira, eles davam aula na universidade e, nos finais de semana, iam para os povoados. É preciso ter em conta que fizeram isso em momentos de guerra terríveis, em que se cometeu verdadeiras barbaridades sem respeito nenhum aos direitos humanos. Naquela época, chegou-se a fazer tiro ao alvo com crianças pequenas. Isso é real, é verdade. Nesse contexto, ter que ir aos povoados ou aos subúrbios para rezar missa ou para dar catequese não era só celebrar a Eucaristia, mas sim tomar contato com a violência, com a tragédia, com os abusos dos direitos humanos com o perigo de que os matassem.

Por que eles eram tão incômodos?
Porque para eles a fé em Jesus de Nazaré era inseparável da justiça. Uma fé que não leva a justiça em consideração não é fé evangélica. Eles, como diz Inácio de Loyola, deixaram-se afetar pelos sofredores do povo, e o que fizeram foi responder a partir da verdade. Assim, a partir da universidade, internacionalizaram essa barbaridade: o mundo ficou sabendo por meio deles. E eram incômodos para o governo salvadorenho e para o governo norte-americano.

E por que seus herdeiros ainda são incômodos?
Acredito que o Evangelho de Jesus de Nazaré, apesar de viver em uma sociedade superficial e de consumo como a que temos na Europa, tem algo a dizer ao mundo. Mas algo de esperança, de justiça, de ternura, de reconciliação, de paz. E isso, para certos sistemas, não é agradável.

E o Vaticano? Não os deixou um pouco, digamos, abandonados?
A Igreja é como uma família. Há muitos modos de vivê-la. Há uma parte que assumiu uma postura em favor dos excluídos do mundo. Jesus queria a todos, mas estava obcecado pelos sofredores deste mundo.
Há homens e mulheres, religiosos e leigos que vão nessa linha. Que uma parte da Igreja não entenda isso? Bom, o que podemos fazer?
Mas é triste, não?
Sim, mas como em uma família.

Reabriu-se a investigação dos assassinatos, mesmo que 20 anos depois. O senhor acredita que acabaremos sabendo a verdade?
Parece-me que o fato de que os responsáveis ideológicos dos assassinatos tenham saído é muito importante para a justiça. Não se trata unicamente de buscar os responsáveis das mortes dos jesuítas, que têm que sair, mas sim aqueles que as ordenaram. Por quê? Porque as vítimas têm direito de que seus rostos sejam reconhecidos publicamente. É o mesmo que aconteceu com Videla na Argentina ou com Pinochet no Chile. É preciso ter consciência de que as vítimas têm rosto.

Parece que a América Latina não termina de se despojar de regimes populistas e corruptos com o pano de fundo eterno da violência. Por quê?
O grande problema é a corrupção. Vimos o último caso em Honduras, onde os corruptos foram capazes de organizar um golpe de Estado justificados em leis e em princípios católicos que não se pode entender. Quando falta a ética, vem a violência. Quando um sistema não se sustenta porque lhe falta densidade e humanidade, sempre aparece a violência.

O povo, os pobres, os oprimidos são sempre os crucificados: eles são a santidade.
É o que Jon Sobrino diz. E é assim. Agora, em um momento de crise global, os benefícios são privatizados, mas o danos são socializados. E isso não pode continuar. O mercado, esse deus iconoclasta tão temido pelo povo oprimido, se mata para acabar fazendo mais danos ao oprimido. Que terrível. Por isso, me impressiona como diante da crise mundial, quando ouvimos os políticos, os excluídos não existem, não estão presentes na análise da crise. No fundo, estão tentando acobertar a crise com valores não humanos. E isso vai se repetir na história. As estatísticas dos últimos 20 anos dizem que o número de pobres não deixou de aumentar. É um capitalismo feroz que não leva em conta os direitos humanos. Só pessoas profundamente humanas e profundamente crentes são capazes de enfrentar esse touro imenso que é o dinheiro pelo dinheiro. O dinheiro é bom, mas, quando mal usado, gera morte.

As democracias ocidentais enchem a boca com a palavra solidariedade. Ela é tangível e efetiva ou é apenas fumaça?
A solidariedade afetiva é calculada em 32%. A efetiva cai para até 17% ou 18%. Continua-se trabalhando pela solidariedade, sim. É importante. Mas a própria crise econômica que atravessou os bolsos dos lares fez a mesma coisa com os bolsos da solidariedade. Mas haverá solidariedade na medida em que aprendamos a olhar a realidade de outra maneira. Por exemplo, em Burgos, haverá solidariedade, diálogo inter-religioso e valorização étnica se aprendermos a olhar os 20 mil migrantes que estão na província de outra maneira. Um dos desafios é esse. A sociedade está mudando. Isso vai ser muito positivo, porque essas pessoas têm também a sua verdade, sua história, sua vida. Aprendi como jesuíta como Deus nos fala por meio dessa história que vem.

Resta muito para alcançar a justiça social?
É uma utopia, mas nem por isso impossível. É preciso ir atrás dela, porque outro mundo é possível.

Nesse sentido, o que Obama representa?
Ele foi um ar novo, um modo diferente de se situar com outros países, com uma postura de reconhecimento dos povos, sem avassalar como fez Bush, que chegava e pisava. Obama tem suas falhas e limitações, mas é outra coisa. Para milhões de pessoas, ele é ar novo. E precisamos olhar um pouco para a frente.

A Companhia de Jesus está sendo apartada ou solapada por novos grupos de caráter neoconservador?
O número de jesuítas diminuiu, é verdade, porque a idade não perdoa, e há uma crise de vocações. Mas, neste momento, há muita esperança, uma grande sensibilidade a todo esse mundo de diálogo com as fronteiras não de países, mas sim de problemas. Honestamente, acredito que, mesmo que tenhamos falhas, claro, há uma grande vitalidade e uma grande preocupação em dialogar para ajudar este mundo a encontrar a luz.

É desse conhecimento da realidade social que uma boa parte da Igreja se queixa?
A questão é delicada, mas há muito mais pessoas boas, com uma grande sensibilidade para com os problemas do mundo de hoje. Em Honduras, os dominicanos fizeram uma denúncia fortíssima do golpe de Estado. Às vezes, ficamos com os escândalos, os abusos de poder e a prepotência - que existem, existiram e existirão -, mas existe outra parte, que é caminhar de mãos dadas com os homens e mulheres pelo caminho da vida. E, nessa caravana, há muita gente.

O senhor considera que a Igreja deveria repensar alguns de seus fundamentos para encabeçar essa caravana?
A Igreja teria que olhar mais para o Evangelho para ver como Jesus funcionava, em vez de olhar para onde colocamos o nosso prestígio, status social e nossos interesses políticos e econômicos. E isso está acontecendo aqui e em outros países.
Jesus de Nazaré estaria agora no Congo ou em qualquer outro lugar terrível.
Ou em uma vila de Madri. Estaria trabalhando para curar, libertar, dar esperança, dizer que o homem e a mulher têm a mesma dignidade, que os idosos são os tesouros e a memória viva dos povos e não se pode abandoná-los. Ou a Igreja tem sensibilidade e aposta nisso, ou não terá futuro.

A reportagem é de R. Pérez Barredo, publicada no jornal Diario de Burgos e no sítio Religión Digital, 23-08-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

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