quarta-feira, 26 de agosto de 2009

CONJUNTURA DA SEMANA. UMA LEITURA DAS “NOTÍCIAS DO DIA” DO IHU DE 17 A 25 DE AGOSTO DE 2009

A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das ‘Notícias do Dia’ publicadas, diariamente, no sítio do IHU. A presente análise toma como referência as ‘Notícias’ publicadas de 17 a 25 de agosto de 2009 e a revista IHU On - Line n. 305. A análise é elaborada, em fina sintonia com o IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT – com sede em Curitiba, PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Sumário:
Os riscos da política cambial brasileira
Valorização artificial do real
Oligarquias financeiras. A banca privada ganha
‘Inflação aleija, câmbio mata’
A transformação definitiva do PT
Lula e o partido se tornaram anacrônicos
Uma mutação na política brasileira?
O Direito Achado na Rua

Eis a análise.
Os riscos da política cambial brasileira
Vários economistas, de matizes ideológicas diferenciadas – entre eles José Carlos Braga, Luis Carlos Bresser Pereira, Paulo Nogueira Batista Jr., Luiz Gonzaga Belluzzo, Luis Nassif e Yoshiaki Nakano –, vêm alertando que a taxa cambial brasileira está sobreapreciada, ou seja, estamos diante de uma excessiva valorização do real diante do dólar que não se sustenta a longo prazo e é profundamente danosa para a indústria nacional. Segundo esses economistas, em sua maioria, a valorização artificial do real é resultante sobretudo de dois movimentos.

O primeiro deles está relacionado à enxurrada de capital especulativo que entra no país para faturar com as altíssimas taxas de lucros praticadas pelo Banco Central. Taxas altas atraem capitais especulativos que acabam derrubando o dólar a valorizando artificialmente o real. O segundo movimento está relacionado ao fenômeno econômico denominado de doença ou peste holandesa: economias superdotadas de recursos primários – como o Brasil – assumem uma tendência de manutenção de taxas de câmbio supervalorizadas que estimulam as importações e inibem as exportações de quase tudo, com exceção das commodities.

A longo prazo as consequências desses dois movimentos não são positivos para o crescimento e a distribuição de renda, alertam os economistas. Uma das interpretações de caráter político plausível para a supervalorização da taxa cambial é a força da banca, ou seja, do capital financeiro que se sobrepõe ao capital produtivo. Apesar da crise financeira internacional e da débâcle real e ideológica do capital financeiro, o mesmo aos poucos volta a dar as cartas. “Os capitais já estão retomando velhas e novas práticas de acumulação financeira à escala global”, destaca o economista José Carlos Braga.

O economista em entrevista à IHU On-Line, afirma que o Banco Central brasileiro é passivo ao adotar o regime flutuante de meta cambial, e acaba “como cúmplice da dominância dos ganhos financeiros sobre os ganhos produtivos”. Segundo ele, é o tripé cambio flutuante, metas de inflação e superávit primário que estrangula o salto brasileiro para o desenvolvimento. “É um triângulo de ferro mortal. A política cambial é homicida do nosso desenvolvimento”, diz ele.

Braga destaca que essa história é antiga no Brasil, vem desde o Plano Real. Segundo ele, foi assim com Gustavo Franco, continuou com Armínio Fraga e prossegue com Meirelles.

Em sua opinião o crescimento econômico conseguido nos últimos anos se deve a outra lógica. Para Braga, “o Brasil foi capaz de crescer entre 2004 ao terceiro trimestre de 2008 a taxas superiores a 4% ao ano graças aos financiamentos dos bancos públicos, aos programas sociais de transferência de renda, ao bolsa família, à recuperação real do salário mínimo, aos investimentos públicos”. “E seguiríamos crescendo, diz ele, não fossem a crise internacional e a reação retardada do Banco Central brasileiro em termos de política de juros altos à turbulência e aos tombos da economia mundial”.

Na opinião do economista, professor da UFRJ, “é preciso parar com essa tolice de que as forças livres do mercado é que devem indicar o caminho, os pontos de equilíbrio”. Em sua opinião, “o Banco Central do Brasil e de países em desenvolvimento não podem abrir mão de ter uma taxa de câmbio realista e competitiva. Para tanto têm que agir no mercado à vista e no mercado futuro de câmbio para impedir movimentos prejudiciais à economia como um todo. Essas medidas favorecem a balança comercial, as outras políticas que empurram o progresso industrial e tecnológico, e desestimulam especulações que envolvem as interações entre taxa de juros e taxa de câmbio”.

Segundo ele, “só os cretinos ou falsários podem ficar nessa ideologia desmascarada a cada crise, à qual a teoria econômica mainstream aplica, volta e meia, ares de ciência com a ajuda de modelos matemáticos de última geração que nada explicam da realidade; só servem para lhes dar diplomas, publicar artigos em revistas indexadas, inflar currículos vazios de conteúdos e render consultorias com base nas quais a mídia dirá que ‘o mercado prevê que...’ e os financistas de todo tipo seguirão sua acumulação”.

Oligarquias financeiras. A banca privada ganha
Para José Carlos Braga, “tem que chamar a banca privada para negociar seu engajamento no projeto nacional de desenvolvimento. Dar um basta nessa moleza dela, ficar faturando com a dívida pública, assim como o fazem as tesourarias das grandes empresas e os donos de grandes fortunas no país”.

O economista insiste que é preciso “usar os bancos públicos como já se vem fazendo e ampliar essa utilização inclusive para quebrar a oligarquia financeira que tripudia sobre o povo e a nação como vimos em declarações recentes de banqueiros a favor de spreads elevados; isso numa reação à atitude dos bancos públicos de reluzi-los”. Por outro lado, afirma que “a política social tem que ser ampla e para tal necessita de recursos fiscais para saúde, educação, esgotos sanitários, merenda escolar, todas essas coisas. É uma barbaridade morrer brasileiros de morte evitável, seja criança, seja adulto. Logo, o governo começou a mover-se bem, mas há muito a ser feito pelos governos que virão para adentrarmos digamos assim: uma senda Furtadiana de superação do subdesenvolvimento”.

O economista Bresser Pereira pensa de forma semelhante: “Essa tendência à sobreapreciação do câmbio tem duas causas fundamentais: a doença holandesa moderada mas real existente no Brasil e a atração que os capitais externos têm pelas taxas de lucro e de juros mais elevadas existentes no país". Segundo ele, "o Brasil só terá novamente altas taxas de crescimento econômico quando voltar a administrar taxas de câmbio".

Na opinião do economista, "apesar de preocupado com o efeito negativo da valorização do real sobre as exportações, o presidente Lula descarta intervenção no sistema de câmbio flutuante". Como explicar esse fato?, pergunta. E responde: “Só vejo duas respostas: primeiro, o presidente Lula está satisfeito com o desempenho da economia brasileira e não se dispõe a tomar medidas mais fortes no setor; segundo, o presidente ainda não se deu conta da gravidade do problema cambial brasileiro; supõe que a sobreapreciação que está novamente se manifestando seja conjuntural – relacionada com a taxa de juros elevada – quando ela é estrutural”.

“Acho que o presidente se satisfaz com pouco, mas compreendo sua satisfação”, diz Bresser Pereira. Em sua opinião, “ela reflete o contentamento dos brasileiros, que, depois de 14 anos de alta inflação e baixo crescimento, entenderam que baixa inflação e um crescimento um pouco melhor sejam o melhor que podemos esperar. ‘Se meus eleitores estão satisfeitos, por que vou eu intervir no mercado?’, deve pensar. Respeito o gênio político do presidente, mas o fato real é que essa taxa de câmbio é incompatível com o desenvolvimento econômico brasileiro. Já era antes da crise, mas era então provisoriamente compensada pelo aumento do mercado interno causado por suas medidas distributivas (Bolsa Família e elevação do salário mínimo)”, conclui Bresser.

Paulo Nogueira Batista é outro economista que insiste no problema do câmbio: “A valorização do real talvez seja hoje o nosso maior problema macroeconômico”. Na análise do economista, “a força do real reflete fatores específicos do Brasil e sua inserção internacional. Ela é, em boa medida, um fenômeno ‘estrutural’, isto é, um sintoma do fortalecimento da economia brasileira e das suas perspectivas”. Segundo Nogueira Batista Jr., “nos anos recentes, generalizou-se a percepção de que o Brasil segue políticas econômicas basicamente sólidas. A confiança atrai investimentos estrangeiros diretos e outros capitais”.

“Além disso, continua ele, a extraordinária competitividade do nosso setor agroexportador, a ampla base de recursos naturais do país e, em especial, as recentes descobertas de imensas reservas petrolíferas reforçaram a percepção de que o Brasil tem um futuro muito promissor. Atenção, porém”, alerta ele. Para Paulo Nogueira Batista “a força pode converter-se em fraqueza. Estamos começando a sofrer de um embarras de richesse. O que o Brasil experimenta atualmente é, em certa medida, um fenômeno conhecido na literatura econômica como ‘doença holandesa’ ou ‘maldição dos recursos naturais’”.

Nesta perspectiva, destaca o economista, “a produção nacional perde espaço no mercado interno para as importações de bens e serviços, ao mesmo tempo em que a maior parte das exportações se torna pouco competitiva nos mercados externos. A economia fica excessivamente especializada, passando a apoiar-se fundamentalmente na exportação de recursos naturais”.

O efeito do dólar barato sobre a indústria manufatureira é também a preocupação do economista Luiz Gonzaga Belluzzo. Segundo ele, “com um câmbio excessivamente valorizado, a atividade de empresas que fabricam produtos de maior valor agregado e geram empregos de maior qualificação pode ser duramente atingida”.

Na opinião de Belluzzo, a mudança na composição da demanda global nos últimos anos, marcada pela ascensão da China, favoreceu o Brasil na crise. Nesta turbulência, a procura por commodities foi bem menos afetada do que a por produtos manufaturados. "Foi o oposto do que ocorreu na crise dos anos 30", afirma Belluzzo. Grande exportador de produtos primários, o país beneficiou-se desse movimento, puxado principalmente pela China. O problema é que a especialização exagerada na produção de commodities pode causar problemas para um país grande e populoso como o Brasil, acredita ele.

Está de acordo com esse diagnóstico, o economista Luis Nassif, para quem “desde junho a economia brasileira vem se recuperando consistentemente”. Entretanto, diz ele, “a recuperação poderia ter sido mais intensa se o câmbio não desestimulasse as exportações de manufaturados”.

Inflação aleija, câmbio mata’
“Inflação aleija, câmbio mata”. Lembrando uma velha lição de Mario Henrique Simonsen, o economista Yoshiaki Nakano, alerta que a mesma “continua válido para o grupo de países dependentes de condições internacionais para seu crescimento. São dependentes porque não conseguem traçar a própria trajetória; têm horizonte temporal curto, portanto não planejam a longo prazo, privilegiando sempre o consumo imediato em detrimento da poupança, ou seja, investimento com recursos próprios.

Por que a apreciação excessiva da taxa de câmbio mata o crescimento?, pergunta Nakano. Segundo ele, “países que crescem persistentemente privilegiam os investimentos que ampliam a capacidade produtiva em vez do consumo imediato; as exportações diversificadas de manufaturados para construir uma estrutura produtiva moderna, enfrentando os próprios países desenvolvidos, e poder importar bens de capital para trazer o conhecimento e a fronteira tecnológica para o país sem se endividar. A taxa de câmbio mata esse processo porque é o preço-chave nessas economias”.

Na opinião de Nakano, “a taxa real de câmbio define a escala de comparação entre os preços de todos os produtos nacionais em relação aos do resto do mundo. País que privilegia o consumo imediato prefere câmbio apreciado, pois os importados ficam mais baratos relativamente aos nacionais”.

Assim, diz ele, “permitir a apreciação e a flutuação excessiva da taxa de câmbio é uma escolha entre consumo imediato ou crescimento; entre importar e transferir emprego para o exterior ou construir uma estrutura produtiva nacional competitiva e gerar emprego no país; entre flutuações na taxa de inflação ou estabilidade de preços; entre ganho imediato e único no salário real ou aumento contínuo nos salários acompanhado de aumento de produtividade; entre especulação, falso e momentâneo fortalecimento da moeda nacional (ancorado nos ciclos de fluxo de capitais) e instabilidade ou estabilidade no mercado financeiro e fortalecimento da moeda ancorado nos fundamentos (sistemáticos superávits transações correntes)”.

Diante de um quadro de instabilidade cambial, ou pior ainda, puxada por movimentos hegemonizados pelo capital financeiro, os economistas propõem em sua maioria instrumentos de controle do câmbio. O que está em jogo é o projeto para o Brasil. Não se trata de mero e especulativo debate macroeconômico, mas a opção, ou não, por criar bases duradouras que assentem uma sólida e diversificada economia que não fique refém das commodities, mas desenvolva competitividade no nicho que mais agrega valor: a produção de bens manufaturados.

A transformação definitiva do PT
Na mesma semana em que o PT foi decisivo para a salvação de Sarney sob o argumento da “governabilidade”, a senadora Marina Silva anunciou a sua saída do partido. Os dois fatos coroaram para muitos militantes do Partido dos Trabalhadores um longo processo de sucessivas frustrações.

Entre os fatos que foram arrefecendo o ânimo da militância destacam-se: a nomeação de Henrique Meirelles para a presidência do Banco Central; o aumento do superávit primário de 3,75% do PIB, para 4,25%, no primeiro mês de governo (2003) sem sequer ter sido uma solicitação do capital financeiro internacional; a reconciliação com o FMI; a continuidade da política econômica ortodoxa; o anúncio da Reforma da Previdência; o ressurgimento de figuras políticas associadas aos métodos políticos da ‘velha República’ como José Sarney, Jader Barbalho, Romero Jucá, Geddel Oliveira Collor de Mello; os nebulosos acontecimentos do ‘mensalão’; a agenda anti-ambiental do governo – trangênicos, transposição, etanol, hidrelétricas –; a ausência de ousadia na agenda social – reforma agrária, saúde, educação.

No começo acreditou-se que o governo Lula era um governo em disputa. Com o tempo, parcela do movimento social resignou-se em contentar-se com um governo que ao menos destina parte dos recursos aos mais pobres através de programas sociais, e que não criminaliza o movimento social.

Nos últimos dias porém, a operação de salvamento de Sarney protagonizada pelo PT, sob orientação pessoal de Lula e a saída de Marina – um dos símbolos do partido, assim como Lula – sinalizaram para a transformação definitiva do PT. De sobra poder-se-ia ainda citar as cenas constrangedoras do senador Aloísio Mercadante – manifestação da subserviência que o partido assumiu diante de Lula.

O PT salvou Sarney em nome da governabilidade – de que governabilidade? O mesmo Sarney, oriundo da UDN, Arena e PDS, que pós-ditadura foi reconduzido à política nacional pelos generais. Recorde-se que o atual presidente do senado e ex-presidente, foi indicado pelos militares, e não pelas forças políticas que estavam sob o arco das diretas-já, para compor a chapa com Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 1985.

Acabou-se o partido, ao menos programaticamente. “Hoje o PT é governado pelas conveniências do poder", resume José de Souza Martins. E o poder, explica o sociólogo, "impôs ao PT a missão de transformar-se em partido político, o que tem implicado abrir mão de sua rica diversidade ideológica e suas conflitivas ideologias internas". Tudo passou a ser justificado pela governabilidade.

Porém, “a tese da governabilidade é um velho argumento conservador. Todos no Brasil que preferem manter o status quo usam o argumento da governabilidade", afirma Francisco de Oliveira. Chico de Oliveira, comentando o resgate de Sarney promovido por Lula comenta que “a relação da crise atual com as anteriores é a mesma: o Lula tornou-se maior que o partido e o partido vive a reboque do presidente. Impõe o estilo autoritário que é próprio do Lula e foi escondido devido ao fato de que era um prestigioso líder sindical em oposição à ditadura. Lula é muito autoritário, arrasou o PT, fez do partido trampolim para suas alianças políticas espúrias”.

O PT foi engolido por Lula. É Lula quem decide, arbitra, define. Tudo passa por ele, do presidente do partido ao candidato à sucessão presidencial. “A vida partidária no PT está muito ofuscada pela presença dominante de Lula. O presidente tomou conta do partido, que é hoje um instrumento dele”, afirma o sociólogo Werneck Vianna.

Segundo ele, “Lula tem um gênio para se adaptar às circunstâncias e tirar delas a posição mais favorável para ele. E tem ido nessa direção. Não se pode esquecer que, depois da crise do mensalão, mais profunda e longa que esta, houve uma recomposição de forças e o PT ganhou o segundo mandato. Só que agora, uma vez que o PT abdicou de exercer um comportamento autônomo quanto ao governo, o partido se encontra inteiramente dependente de seu carisma”.
Dependência considerada nociva. “Minha maior crítica ao presidente Lula não é nem à política econômica, mas é seu papel profundamente deseducativo e desmobilizador. É equívoco dizer que Lula é obrigado a fazer concessões. Quando ele entrega o sistema elétrico a Sarney - hoje uma capitania de Sarney -, ele não se sente fazendo concessão, ele se sente fazendo política", comenta Cesar Benjamin.

Lula e o partido se tornaram anacrônicos
Na mesma semana em que o PT foi decisivo no salvamento de Sarney sob o argumento da “governabilidade”, Marina Silva anunciava a sua saída do Partido. Lula não lamentou e insinuou que a maior derrotada poderá ser da própria Marina ao afirmar que "é muito difícil dividir o eleitorado do PT. Acho que nem eu divido. Petista é igual a flamenguista e corintiano, não se divide nunca”.

O presidente pode estar equivocado. Há um conjunto crescente de militantes, inclusive petistas, que percebem os equívocos e as profundas contradições do governo Lula e que não se dispõem mais a continuarem hipotecando o seu apoio irrestrito ao partido, ou mesmo votarem nas próximas eleições no nome do partido em nome da história, ou apenas em função do discurso ideológico de enfrentamento com o PSDB/DEM.

O afastamento dessa militância com o partido não vai se dando apenas por conta dos desvios éticos – uma bandeira que o partido deixou de lado, como se pode perceber na afirmação de Ricardo Berzoini: “O PT defende a ética, mas não trata a ética como se fosse uma questão isolada da política”. Sobre o tema da ética, nessa semana Frei Betto, amigo pessoal de Lula, disse duras palavras: “Há alguns anos o presidente Lula disse que havia 300 picaretas no Congresso. Hoje o PT se confunde com esses picaretas”.

O afastamento, entretanto, foi se dando para além tema da ética, sobretudo pela percepção de que o PT já não está à altura do seu tempo, de que Lula e o partido se tornaram anacrônicos, não compreenderam e não compreendem o caráter das profundas mudanças em curso na sociedade mundial e os novos desafios que se colocam.

O PT e Lula permaneceram sob a perspectiva econômica presos ao paradigma da sociedade industrial, e politicamente presos ao círculo da democracia representativa. Falta ousadia na economia e na política.

Uma mutação na política brasileira?
Nesta perspectiva é que a candidatura de Marina ocupa o lugar da utopia que um dia foi de Lula. Com todas as contradições que encerra, desde a entrada no PV, um partido como todos os outros, com perfil mais fisiológico do que ideológico, e outras desfiadas por um ressentido José Dirceu, é inegável que a candidatura da ex-ministra é a grande novidade da política nacional nos últimos anos.

Como destaca o jornalista Kennedy Alencar, “o eleitorado petista decepcionado com o realismo político de Lula ganha uma opção”. Algo semelhante diz José de Souza Martins ao afirmar que “o fato de que Marina Silva já apareça como opção eleitoral antes mesmo de ser oficialmente candidata dá bem a medida da ansiedade que setores ponderáveis do PT e do eleitorado têm por uma candidatura que represente o retorno aos valores que deram carnalidade a Lula”.

“Ela é carismática, tem uma vida que se pode mostrar e milita em um tema de relevância mundial. Não é uma perda que um partido possa sofrer impunemente. Sua entrada no jogo vai mudar muito as eleições e a política brasileira. Sua candidatura é imprevisível, especialmente nesse contexto de desmoralização da política, dos quadros políticos, dos partidos. Ela parece alguém fora de tudo isso, uma pessoa limpa no meio de um mundo contaminado”, comenta o sociólogo Werneck Vianna, acerca inclusive de suas chances eleitorais.

Em outra entrevista, dessa vez concedida à IHU On-Line, o sociólogo Luiz Werneck Vianna interpreta a sua candidatura como “uma mutação na política brasileira”: “Vejo com uma mutação na política brasileira muito severa, sairíamos de São Paulo, do ABC, do mundo dos sindicatos, da classe operária para o Acre, para Xapuri, para os seringais”.

Segundo Werneck Vianna se trata de uma grande perda para o PT: “É uma perda de um quadro importante, de um tema – que vai embora, de certa forma, com Marina. Ela é a maior liderança do PT em relação ao tema meio ambiente. O partido vai ter que enfrentar uma eleição competitiva, coisa que o PT não estava se preparando. Ele preparava-se para uma eleição plebiscitária e não com uma disputa com várias candidaturas. (...) A candidatura dela desorganiza totalmente o quadro, modifica a posição dos atores e torna a eleição mais competitiva e acirrada do que já era. Não teremos dois candidatos muito parecidos, do ponto de vista de perfil e de programa com Serra e Dilma”, afirma Werneck.

Porém, o elemento mais potente da mensagem da candidatura de Marina Silva está associado ao fato de algo novo que não se colocava com força na conjuntura da década de 80. Trata-se da de uma “convicção que está se generalizando: assim como está, a humanidade não pode continuar”, diz Boff acerca da urgência com que tem que ser enfrentada a questão ecológica.

O teólogo alerta: "o sucessor de Lula não pode se contentar de fazer mais do mesmo. Importa introduzir mudanças. E a grande mudança na realidade e na consciência da humanidade é o fato de que a Terra já mudou (...) Temos de voltar ao nosso lar e cuidar dele porque se encontra ameaçado em seu equilíbrio e em seu futuro”.

O tempo urge!

O Direito Achado na Rua
A revista IHU On-Line desta semana tem por tema de capa “O direito achado na rua”. E concorrem para o debate sobre esse movimento na área do Direito os seguintes estudiosos e “militantes”: Jacques Távora Alfonsin, José Geraldo de Sousa Junior, José Carlos Moreira da Silva Filho, Roberto Efrem Filho e Lenio Streck.

A faísca para esse debate foi provocada por um artigo do Irmão Antonio Cechin publicado em Notícias do Dia. No dia 13 de julho, Cechin, a pretexto de uma declaração dada pelo desembargador Paulo Octávio Baptista Pereira, presidente eleito do Tribunal Regional da 3ª Região do Brasil, com sede em São Paulo, e ecoada pelo jornal Zero Hora, de Porto Alegre, remonta à experiência dos anos 1970, quando teve contato com o chamado “Direito Alternativo”, movimento criticado pelo citado desembargador.

Cechin lembra da sua luta pela moradia em Canoas, próximo a Porto Alegre, e o contexto em que conheceu o advogado Jacques Alfonsin. Na conversa que ali tiveram, Alfonsin, que na época integrava a diretoria da Frente Agrária Gaúcha, teria feito menção ao “Direito achado na Rua”. Segundo Jacques Alfonsin, e na narração de Cechin, a ideia básica propulsora desse movimento consistiria no seguinte: “façam tudo o que tiverem que fazer como Movimento Popular porque depois eu vou catar as brechas que existem nas leis para defender os ocupantes em qualquer vicissitude”.

Nesse mesmo artigo, Cechin atribui a Alfonsin a “descoberta” do Direito Alternativo, o que o próprio Jacques Alfonsin desmente em artigo posterior. “Sua grande generosidade colou mérito em quem não o tinha. Eu não passo de discípulo daquelas duas históricas fontes de inspiração jurídica [Direito Alternativo e Direito Achado na Rua], que tantos frutos já deram à doutrina e à jurisprudência dos tribunais do país, particularmente enriquecidas, daquela época em diante, com novas posturas hermenêuticas da lei e seus limites, visões mais críticas da realidade”, escreve Jacques Alfonsin.

Realmente, como as entrevistas dão a entender, esses dois movimentos surgem na década de 1970. As entrevistas de José Geraldo de Sousa Junior, reitor da Universidade de Brasília, e de Lenio Luiz Streck, dão elementos de suas origens. Streck faz uma distinção entre os dois movimentos, ainda que reconheça que ambos têm traços comuns.

Convém precaver o leitor e a leitora para o fato de que essa discussão é mais abrangente do que à primeira vista possa parecer. Ela não se restringe a uma conversa exclusiva para os interessados no assunto ou que entendem a linguagem do Direito. Essa foi, aliás, uma das preocupações desses movimentos: fazer com que o Direito ou a Justiça sejam assunto de debate mais vasto, isto é, que digam respeito a toda a sociedade, e, de modo particular, aos mais pobres, aos que são geralmente excluídos do “Direito”.
Por isso, trata-se de ver o que se entende por Direito Achado na Rua, do que se trata e a sua pertinência.

De acordo com Jacques Alfonsin, “esse direito se constitui e gera efeitos particularmente favoráveis ao povo pobre do Brasil, diferente daqueles que a lei prevê como direitos desse mesmo povo, mas que jamais são respeitados na medida das urgências humanas que ele padece. Trata-se de um direito plural, no sentido de que, sem ignorar e até aproveitar ‘brechas’ de interpretação e aplicação do direito como previsto nas leis do Estado, em favor de direitos humanos não valorizados devidamente, também cria e dá eficácia a formas de convivência social, com poder sancionatório paralelo às que o mesmo Estado prevê em suas leis”.

Na opinião de José Carlos Moreira da Silva Filho, professor da Unisinos, “o que diferencia a abordagem crítica do direito achado na rua da abordagem dogmática do Direito é o fato de que aquela se apoia em um espectro de visão muito mais amplo e interdisciplinar do que esta, sendo por isso mesmo capaz de perceber as contradições, conflitos e processos existentes dentro de uma sociedade desigual como a nossa, percebendo também que o Estado é um espaço de tensões e lutas acessíveis à política e à participação, não somente através do voto, e que o ordenamento jurídico compõe um sistema de normas a ser interpretado de acordo com as circunstâncias reais e concretas que envolvem a aplicação da lei”.

Roberto Efrem Filho, professor substituto da Universidade Federal de Pernambuco e assessor jurídico popular da Terra de Direitos, organização de Direitos Humanos com sede em Curitiba, PR, aponta para outro aspecto: a emergência de um novo sujeito de direito. “O direito achado na rua, assim como boa parte das teses relativas ao ‘direito alternativo’, constituiu um movimento teórico - inexoravelmente político - de afirmação de um estilo específico de fazer o direito, aquele conduzido pelos movimentos sociais em meio às suas lutas por libertação. Isso significa, em outras palavras, que, com o direito achado na rua, os movimentos sociais puderam começar a ser reconhecidos, embora não sem a resistência dos setores conservadores do campo jurídico, como sujeitos coletivos de direito”.

E o Direito Achado na Rua tem um propósito: o de servir “às classes subalternas e sujeitos oprimidos ao tempo em que são capazes de reconhecer tais sujeitos e de, com eles, encontrar caminhos para a formação de uma contra-hegemonia. Mas definitivamente não se trata, nesse contexto, de qualquer hipótese de panacéia judicial. Se o direito achado na rua um dia reconheceu os movimentos sociais como sujeitos de direitos é porque, nas lutas históricas desses movimentos, está sua legitimidade para a criação desses direitos”, destaca Efrem Filho.

“A ideia básica do movimento foi a de explorar as brechas e conflitos do próprio ordenamento jurídico, apoiando-se principalmente nos princípios e valores protegidos, para realizar uma interpretação da lei que fosse mais inclusiva em relação aos grupos mais vitimados na sociedade brasileira, excluídos do acesso à satisfação de necessidades fundamentais”, destaca, por sua vez, José Carlos Moreira da Silva.

Além disso, destaca ainda José Carlos, o Direito Achado na Rua “representa uma lupa de observação, análise e reflexão que percebe o fenômeno jurídico como algo bem maior e complexo do que se pensa nos meios mais conservadores e dogmáticos. A concepção de justiça que sustenta o direito achado na rua é toda aquela que se revela sensível a este olhar, e, em especial, às concretas, diversas e históricas manifestações de afirmação de direitos que tomam corpo nas dinâmicas reais e contraditórias das sociedades em questão”.

Jacques Alfonsin destaca que “há uma inspiração axiológica nesse tipo de conduta profissional que encontra fundamento numa justificada indignação ética diante da injustiça social que o sistema capitalista gera e reproduz sobre o povo, inclusive com apoio de grande parte da mídia e de intérpretes da lei”.

O direito e a justiça se encontram “exclusivamente” na lei, segundo declaração do atual ministro presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Dessa forma, abre-se uma via para o legalismo, tendência que não pode ser menosprezada no sistema judiciário brasileiro. Mas, como analisa José Carlos Moreira da Silva Filho, o legalismo tem grandes deficiências. E aponta duas: “a primeira delas é que não consegue ver o direito que existe e se forma fora do espaço da lei, seja antes de virar lei, indo além dela ou até mesmo contra ela, o que contraria, portanto, o enfoque mais amplo e adequado que sustenta o direito achado na rua. E, em segundo lugar, o legalismo costuma apegar-se a uma leitura pobre e tacanha do ordenamento jurídico, concentrando-se na literalidade das regras mais específicas e no desprezo aos princípios e normas mais amplas, o que nos leva a uma total inversão hierárquica na aplicação das leis, priorizando-se as normas infraconstitucionais às constitucionais. Temos, pois, um claro problema de hermenêutica em nossa cultura jurídica”.

Como lembra Jacques Alfonsin, “a lei não é onisciente nem consegue abranger, com poder sancionatório, todo o comportamento humano. Suas lacunas têm sido preenchidas pelos seus intérpretes (juízes de modo particular) de acordo com o que se tem denominado de “espírito do sistema”. (...) Outra não é a razão, por isso mesmo, de que esse direito tem de ser encontrado em outro lugar, lá na rua onde vive e sofre o povo daquela inadequação e ineficiência, porque, afinal de contas, é dele a origem e causa de ser, tanto da lei como do Estado”.

Por essa razão é fundamental conceber o direito de forma relacional. “Pensar o direito como relação, e não como um banco de enunciados legislativos, é criar as condições para que as lutas por reconhecimento encontrem espaço politizado adequado para que se manifestem. Isto, sobretudo, em um contexto de uma sociedade ainda muito desigual em que há dificuldades para discernir o sentido legitimado dessas lutas”, enfatiza José Geraldo de Sousa Junior.

O direito de manifestação e opinião “foram conquistas do povo na rua, que ao mesmo custaram sacrifícios os mais dolorosos perpetrados por gente, à época, instituída e apoiada por ela! Assim, se o olhar que for lançado à história reconhecer os fatos concretos que deram origem a tais conquistas, o presente jurídico das relações do Poder Público com as pessoas deixará de identificá-las como súditas de uma nobreza encastelada em cortes, mas sim como cidadãs, capazes de construir democracia, não só representativa, mas também participativa. As relações sociais, aquelas que geram conflito e injustiça entre essas mesmas pessoas, não escamotearão origens viciadas de opressão que possam se fantasiar ideológica e juridicamente de direito. O lugar social da fala do poder jurídico não será ocupado, com exclusividade, pelas instituições de direito, antes de ouvir quem desse é o verdadeiro titular”, lembra Jacques Alfonsin.

“O ‘peso’ dos movimentos sociais é maior que o das ‘leis’, porque os movimentos não negam ou neutralizam a história, constroem-na. Os Direitos Humanos não estão na lei porque a lei é a lei, simplesmente. Se tais direitos estão nas leis - e nem sempre nelas estão - é por conta de uma história de lutas sociais que se consubstanciou numa determinada legislação”, completa Roberto Efrem Filho.

Além disso, como observa Roberto Efrem Filho, deve-se e evitar qualquer naturalização em direito, o que em última instância sempre acaba fortalecendo as posições dos mais poderosos. “A negação da história das leis, dos interesses sociais que as movem, é um dos instrumentos simbólicos através dos quais a hegemonia se perfaz, fabricando consensos e naturalizando relações. A afirmação de direitos, levada a cabo pelos movimentos sociais, em razão da garantia da justiça é (justamente) a antípoda da naturalização com a qual o campo jurídico legitima suas posições conservadoras.”

Esquecer a história implica em naturalizar, por exemplo, a propriedade privada, como chama a atenção o argentino Eduardo de la Serna. Mas também em criminalizar os movimentos sociais, especialmente o Movimento Sem Terra – MST, coisa que tem se verificado em nosso país.

“O ‘devido processo legal’, tão enfatizado pelo Poder estatal, somente merece respeito e acatamento na medida em que não se constitua, como a história vem testemunhando, num fim em si mesmo, servindo de barreira formal e material ao devido processo social, de modo a fazer da regulação um obstáculo à emancipação”, diz Jacques Alfonsin. É justamente isso que deve ser evitado.

Portanto, o Direito Achado na Rua, como movimento dentro do Direito, ajuda a ultrapassar o enclaustramento e os ritos, na medida em que sempre aponta para a rua, para o movimento, para as necessidades e a criatividade dos pobres. E além das aplicações que já vimos, cabe também perguntar: e se o Direito Achado na Rua conseguisse abarcar os migrantes, notadamente os mais pobres, aqueles que arriscam a própria vida cruzando mares em busca de uma vida mais decente? E que por vezes, chegam ao outro lado como náufragos ou como mortos. E quantos deles não o fazem fugindo da fome?

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