Nos últimos meses, a questão religiosa voltou a ser tema de amplos debates em vários países do mundo. Nos EUA, em 2010, a construção de um Centro Islâmico e de uma mesquita nas proximidades de onde surgiam as torres do World Trade Center tem despertado a raiva e indignação de parte da população norteamericana, desafiando a suposta tolerância religiosa do país. No mesmo período, um pastor da Flórida anunciou a criação do "Dia Internacional do Queime um Alcorão”, visando incendiar publicamente 200 cópias do texto sagrado islâmico, em ocasião do nono aniversário dos atentados de Nova Iorque.
Na União Europeia, em março de 2011, a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu, com sentencia inapelável, que a presença de símbolos religiosos nas escolas públicas não viola o direito de educação das crianças. A polêmica surgiu quando a cidadã italiana Solie Lautsi apresentou uma queixa ante a CEDH contra a presença de crucifixos nas aulas das escolas públicas por contrariar o princípio da laicidade do Estado. De forma análoga, nos anos anteriores, na França, o assim chamado Affaire du Foulard desencadeou um forte debate sobre a utilização do véu islâmico em escolas públicas. Conforme Vincent Berger, da CEDH, haverá cada vez mais contenciosos sobre questões religiosas, sobretudo por causa da imigração, do pluralismo religioso e das reivindicações identitárias de nativos e imigrantes.
Esses acontecimentos revelam, em primeiro lugar, a impossibilidade de se compreender corretamente as dinâmicas das sociedades contemporâneas sem levar em conta as religiões e a religiosidade de indivíduos e povos. Contrariando a teoria da secularização, que vaticinava o fim ou a privatização do sagrado, as tradições religiosas continuam influenciando amplos segmentos da população mundial e, em muitos casos, assumem uma presença ativa na esfera pública da sociedade.
Em segundo lugar, os eventos supracitados atestam a presença de sérias dificuldades na convivência entre diferentes tradições religiosas. O pluralismo religioso não constitui uma novidade, mas a intensa imigração das últimas décadas tem provocado a difusão, nas palavras de Enzo Pace, de "estranhos exigentes”, ou seja, de tradições religiosas que, além de serem diferentes, exigem legítimos espaços de cidadania e reivindicam diretos análogos àqueles das religiões tradicionais dos nativos. Isso gera sérios problemas, sobretudo, nos países em que há uma religião de Estado ou, então, naqueles em que, por razões históricas e culturais, determinadas denominações, de fato, assumem um papel hegemônico, inclusive na relação com o poder público.
Para complicar ainda mais o quadro, esse contencioso religioso, na Europa, parece estar despertando lembranças sombrias de épocas em que os conflitos entre diferentes denominações provocaram o derramamento de muito sangue no continente. È nessa perspectiva que os segmentos laicos da sociedade exigem a subordinação dos interesses religiosos ao respeito intransigente das leis do Estado de direito enquanto "domador da violência de natureza religiosa” (Ulrich Beck). E se nos anos anteriores o alvo era sobretudo o Islã, considerado, por alguns, inconciliável com a modernidade ocidental – veja-se o supracitado Affaire du Foulard – na atualidade a questão envolve também o cristianismo ou, mais em geral, a relação entre religião(ões) e Estado de Direito.
Finalmente, o espetro do terrorismo de matriz islâmica, evocado pelos atentados de 11 de setembro, parece gerar uma nova questão religiosa inclusive nos EUA, país frequentemente apontado como símbolo de tolerância religiosa.
O resultado dessa conjuntura é o significativo crescimento da desconfiança em relação à alteridade religiosa dos migrantes por parte de uma aliança espúria e transversal composta por segmentos sociais preocupados com a defesa da identidade nacional, com a preservação da laicidade do Estado, com a luta contra o espetro do terrorismo ou com a manutenção da hegemonia da própria denominação religiosa.
Para todos esses grupos sociais a alteridade religiosa do migrante é mais um empecilho do que um recurso para sua integração na terra de chegada. A incorporação na nova sociedade –seja ela a Europa, os EUA ou qualquer outra– deveria implicar, necessariamente, o abandono ou a privatização das crenças estranhas ao mundo ocidental. As recentes declarações de Gordon Brown e de Angela Merkel sobre o fracasso do multiculturalismo parecem caminhar nesta direção.
Mas é evidente, que essa solução não deixa de criar problemas: como exigir aos imigrantes o respeito das regras do Estado de direito e, ao mesmo tempo, limitar sua liberdade religiosa e liberdade de expressão? Como justificar o diferente tratamento reservado às várias religiões num Estado supostamente laico? É justo reduzir o cristianismo a algo meramente "cultural” a fim de preservar seus privilégios? O que determina que um símbolo seja religioso ou não (uma imagem de Francisco de Assis é símbolo religioso?)?
Muitos estudos, nos últimos anos, evidenciaram o potencial integrativo das religiões. Nos EUA, Will Herberg, ainda nos anos 50 do século passado, sustentava que os imigrantes se tornam americanos através de suas religiões. Na Europa, pesquisas recentes mostram, embora com ambiguidades, o potencial integrativo que possuem as tradições religiosas. Numa época dominada por relações líquidas (Zygmunt Bauman) e supostos choques entre civilizações (Samuel Huntington), em que o próximo morreu (Luigi Zoja) ou se torna vida matável (Giorgio Agamben), vale a pena renunciar ao potencial de coesão das religiões em nome do laicismo –não laicidade– e da preservação dos privilégios históricos das próprias denominações?
CSEM
Centro Scalabriniano de Estudo Migratórios
Adital
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